ENTREVISTA COM A JORNALISTA DANIELA ARBEX1

Daniela Arbex, brasileira, é jornalista independente, escritora, palestrante e documentarista. Como jornalista investigativa, é uma das mais premiadas de sua geração com prêmios nacionais e internacionais. Em seus livros, Daniela é conhecida por enfocar tragédias, como as contadas em Holocausto Brasileiro (2013), sobre maus-tratos no hospital colônia de Barbacena (MG), e Todo Dia a Mesma Noite (2018), sobre o incêndio na boate Kiss, de Santa Maria (RS). Em um de seus últimos livros, Arrastados (2022), ela narra o rompimento da barragem da Vale em Brumadinho, considerado o maior desastre humanitário do Brasil. Com esse livro, Daniela Arbex venceu o prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos em 2023, na categoria livro-reportagem, e ainda fechou contrato com a Globo para produzir uma adaptação do livro em formato de série documental pela Globoplay. A presente entrevista tem como foco o livro Arrastados, em especial.

Jacob Mapossa (JM): Você tem trabalhado muito com tragédias em várias reportagens, em especial, em seus livros. O que essa figura da tragédia revela ou representa para a nossa contemporaneidade?

Daniela Arbex (DA): Eu costumo dizer que não escrevo sobre as tragédias, mas sobre as omissões que causam tragédias. Então, na verdade, quando a gente conta uma história dessas a gente não está falando em si da tragédia, a gente está falando das consequências dessas omissões coletivas que causam tragédias muito maiores do que a tragédia daquela data de 25 de janeiro de 2019. Porque, na verdade, o rompimento da barragem de Brumadinho, como as outras histórias que eu contei, continua ecoando na vida dessas pessoas, porque tudo muda. E uma das heranças mais brutais, pra mim, do rompimento da barragem de Brumadinho, é o que eu chamei no livro de “destoca humana”. Porque “destoca” é uma palavra que você usa para se referir a uma área que você quer plantar. Se você quer transformar uma área para o plantio, você vai lá e corta a árvore, mas só cortar a árvore não mata a árvore, você tem que arrancar a raiz. Foi isso o que aconteceu com essas pessoas. Elas foram arrancadas do seu lugar de origem com a raiz e tudo. E quando você é arrancado o seu lugar de origem com a raiz e tudo, você passa a ser condenado a ser de lugar nenhum. Essa é a questão: essas pessoas perderam as suas raízes, as suas referências, as suas escolhas, porque elas escolheram viver naquele lugar, elas construíram memórias em cima daquele lugar, e tudo foi arrancado delas. Então, os seus amores mas também o seu lugar no mundo. Então, quando a gente fala sobre “Arrastados” a gente está falando sobre isso. A gente está falando sobre o modelo de negócio da mineração e ninguém aqui é ingênuo de achar que a gente pode, e que a economia pode viver sem a mineração, enfim a gente sabe da importância da mineração para o desenvolvimento da economia, mas nós precisamos repensar esse modelo de negócio. Porque é o modelo de negócio baseado estritamente no lucro. Ele não está preocupado com as pessoas, e isso é tão fato que quando a Vale teve que escolher entre manter a mina funcionando ou parar a mina por causa do risco às pessoas, ela escolheu manter a mina funcionando. E ela calculou quanto custaria cada vida perdida, ou seja, a vida não vale nada. Então, é tudo uma questão matemática e a gente não está falando de vida, está falando de números; são pessoas. Então, são esses questionamentos que as minhas obras trazem, que é olhar para essas pessoas não como números, mas como seres humanos. E aí quando você dá uma dimensão humana para essas tragédias, muda o nosso olhar, porque não são 272 vítimas de Brumadinho, nem 242 mortes na Kiss, nem 19 mortes no incêndio de Ninho do Urubu do Flamengo; são seres humanos, são pessoas com seus nomes e suas histórias. A engenheira Isabela que tinha acabado de casar, que ainda não tinha filhos, que tinha futuro brilhante pela frente. São os filhos da Paloma ou Heitor que tinham 2 anos quando morreram nunca tinham falado a palavra mãe, porque tinham problemas na língua, e aos 2 anos ainda não falavam. Então essa mulher teve privado o direito a maternidade, ela nunca ouviu ou nunca foi chamada de mãe. Eu fico arrepiada assim, é como se ela tivesse nascido surda. Então, é disso que a gente está falando, quando a gente olha para as pessoas e não para os números, a tragédia tem uma outra dimensão.

JM: Como é ter essa experiência de sentir e contar a dor do outro? De que maneira isso te afeta?

DA: Eu acho que todas as profissões, tudo na vida, a gente tem que ter humanidade, mas acho que nenhuma profissão você tem que ter mais empatia do que o jornalismo. O jornalismo é por essência o exercício de empatia, então não dá para você contar histórias como essa e permanecer da mesma forma, não ser tocado pela dor do outro. E também ser tocado pela dor do outro é parte da nossa humanidade. A gente não é super-herói, jornalista não tem capa, ele é um ser humano com todas as complexidades. Então, é assim, não é um problema para mim ser tocada pela dor do outro. Eu acho que quando mergulho nessas histórias, e esse realmente é um mergulho muito profundo, eu já sei que vou voltar para a superfície diferente ou atravessada por essas dores. Faz parte do processo e do nosso crescimento. Mas para além de toda a dor que é mergulhar nessas histórias, ou dentro dessa lama, de toda essa sujeira, tem para mim um lugar que eu acho que é de muito privilégio do jornalista que é você ter a honra de acessar a memória afetiva do outro. Que memória afetiva é um lugar que você só entra se alguém te deixar entrar, se você for convidado, então você pode ser o melhor jornalista do Brasil, mas se você não for convidado para entrar nesse lugar que é muito privado, você não vai entrar. Então, quando alguém confia você um lugar nesse espaço sagrado da memória, o jornalista tem que entender que o lugar dele é de muito privilégio. Então, para além de toda a dor que essas pessoas carregam e que me afeta também, tem uma questão de que me sinto muito honrada. Quando eu falo isso, me emociona. Quando alguém permite que eu acesse as suas histórias, as suas memórias, que eu entre na sua casa, que eu compartilhe da sua dor. E é isso que torna a gente… nós somos narradores por excelência.

JM: Como conseguiu ter acesso aos atingidos considerando que se encontravam num estado de horror e trauma? Que truque usava? Todas suas fontes se disponibilizaram a contar suas histórias ou teve algum desafio?

DA: É muito difícil, e não tem truque, porque se tivesse truque eu ensinava e estava rica. Não tem não, Jacob! É o seguinte, cada história é única e a forma de abordar as pessoas é diferente em cada caso. As pessoas não são iguais. Só para você ter uma ideia, geralmente quando eu vou contar uma história eu procuro primeiro as famílias, é um caminho natural. Nesse caso, como você falou, elas estavam tão em carne viva, tão machucadas, tão expostas, tão arrastadas… tanto é que esse arrastamento teve uma consequência direta inclusive na cor da pele das pessoas, porque em função do arrastamento que sofreram elas não iam poder ser reconhecidas pela cor da pele. Então, assim, elas não estavam prontas para falar. E aí o que eu fiz? Eu tentei falar com as famílias, não consegui, não deu certo no primeiro momento, elas não estavam prontas. Eu tive que mudar, eu tive que pensar fora da caixa. Bom, se elas não estão prontas para falar comigo, então eu vou procurar as pessoas nas quais elas confiam. Quem são as pessoas que elas confiam nesse momento? Os bombeiros e os médicos legistas do IML[2] de Belo Horizonte que fizeram a identificação dos corpos. Então, me aproximei primeiro dos bombeiros, eu me aproximei dos médicos, e eles abriram o caminho para eu ter acesso às famílias. É isso, você tem que pensar o caminho para prosseguir, sempre por aqui, só que não é matemático, não é “dois mais dois são quatro no jornalismo”. Você precisa tentar vários caminhos, ah, esse caminho não deu, então vou tentar por esse aqui. O que não muda, e que eu acho essencial, é o respeito pela história do outro, pela memória do outro, o zelo, o cuidado com a informação, a forma de você oferecer o que hoje chamo não mais de escuta qualificada, mas de escuta afetiva; muda tudo. Quando você entra na história dessas pessoas e você oferece para elas uma escuta afetiva, você cria uma conexão com essas pessoas, e o jornalismo é ponte para o coração do outro, não tem jeito.

Marta Maia: E como foi a abordagem? As pessoas titubeavam muito? Os depoimentos eram lacunares?

DA: É muito interessante porque uma entrevista só não dá, sabe? A gente tem que voltar, entrevistar de novo, e manter o contato. Porque eles não dão conta de falar de tudo, de uma vida, em uma única entrevista. Então, por isso que o trabalho de escuta é um trabalho longo e paciente. Primeiro, porque eles não confiam em você ainda para se abrir dessa forma e, segundo, porque às vezes as memórias deles acabam ficando congeladas com todo esse sofrimento. Então, é um trabalho mesmo de você ir desatando esses nós, bem artesanal mesmo. E até como defesa também, as pessoas, às vezes, apagam coisas para se proteger da dor. Leva um tempo para você ir acessando esses lugares.

JM: E qual é sua apreciação aos que não quiseram partilhar suas histórias; qual era a justificativa?

DA: É interessante essa pergunta porque o livro não é infinito, então, você não consegue contar todas as histórias. Eu não consegui contar as 272 histórias. Então, pessoas que não quiseram falar ou não puderam, acabaram sendo para mim uma seleção natural, assim tipo ah essa história não entra e essa vai entrar porque essa pessoa quis falar. E aí é como se você fosse puxando o fio de um novelo e você vai puxando, no começo é só uma pontinha do fio, mais uma pessoa que te leva a outra, que te leva a outra, que te leva a outra, e aí funciona, dá certo, é mágico. É meio que montar um pouco um quebra-cabeça que no começo é muito desconexo, aliás todo o início de apuração de um livro é louco, porque você fala cara não estou entendo nada, não estou entendendo nem o que estou fazendo aqui. E aos pouquinhos você vai entendendo, leva tempo mesmo. Eu estou no processo agora de apuração de um novo livro, e estou ainda perdida com toda experiência que tenho. Por quê? Porque é natural. Depois de 5, 6 pessoas que entrevistei, estou começando a entender onde estou pisando, o terreno que estou entrando. Então, é assim, isso também faz parte do processo. Pessoas que não puderam falar por algum motivo porque não estavam prontas, ou porque não davam conta de falar, acabaram permitindo que outras que puderam falar, aparecessem mais, eu tive mais espaço para essas. Vou-te dar um exemplo do livro da Boate Kiss: eram 242 vítimas, então tinha muitas histórias para contar, mas eu queria contar uma em especial, que era da única menina que teve que amputar a perna, da Kelly. Ela foi a única entre as mil pessoas que estavam lá naquela noite que sobreviveu, mas que teve que amputar a perna, menina ainda muito jovem e tal. Eu tentei falar com ela 15 vezes, e ela escorregava, ela falava não. Cada dia era uma desculpa, aí chegou a décima quinta vez eu falei cara estou incomodando, estou indo além, estou passando do limite. E aí tive que abrir mão dela, como me doeu assim pra caramba, porque eu achava que era muito importante o depoimento dela, mas abri mão dela. E depois que o livro saiu, ela veio publicamente dizer do arrependimento dela de não ter me dado a entrevista. E aí ela acabou sendo personagem na série da Netflix. Ela não está no livro, mas como ela volta atrás e queria que eu contasse a sua história, tive a oportunidade de contar em outra plataforma, que já foi no filme. Então assim, a gente também tem que estar preparado para deixar as pessoas irem. Sabe, eu já sabia onde colocar no livro, ela já estava idealizada pra mim ela, mas ela não queria, e aí você tem um limite que você tem que respeitar isso. E está tudo bem, você tem aí outras pessoas que estão dispostas a falar e também têm histórias tão importantes e tal. Então, eu acho que é um pouco isso, a gente entendeu o tempo do outro, insistir porque não dá para desistir no primeiro, não, obviamente, mas também não dá para continuar insistindo depois de 15 tentativas. Você vai pensar em outras pessoas. É isso e está tudo certo. Vou te falar um fato recente que aconteceu para o livro “Longe do ninho”. Era muito importante conversar com os peritos. Eu fui para Rio de Janeiro e tinha agendado uma entrevista com os peritos criminais, era super importante entender porque tinha uma narrativa oficial do Flamengo que o clube sustentou durante 5 anos, uma narrativa que era mentirosa de que os meninos morreram dormindo, como se isso minimizasse a dor das famílias, tipo assim morreu queimando mas estava dormindo, nem sentiu. É inacreditável! Só que quando eu vi um croqui, que é um desenho que a polícia civil fez da cena do crime, eu de cara percebi que a narrativa do Flamengo era falsa. Por quê? Porque nesse desenho, onde eles mostravam onde cada corpo foi encontrado, nenhum menino estava dentro do quarto, a maioria dos meninos estava no corredor. Ou seja, eles lutaram por suas vidas, é o que eu imaginei. Então, eu precisava falar com os peritos. E aí eu marquei a entrevista depois de passar por toda a questão burocrática, que se exige quando você quer entrevistar algum servidor público. Cheguei lá no Rio na hora da entrevista, o chefe dos peritos disse que ninguém daria entrevista. Eu tinha viajado só para isso, mas ali foi diferente. Diferente do caso da Kelly que era uma opção não falar, ali não era uma opção eles não falarem, porque eles são servidores públicos. Eles têm a obrigação de serem transparentes e de darem respostas sim para a sociedade. E ali foi diferente do meu tratamento com a Kelly, que o tempo todo eu fui super flexível, foi um momento muito tenso em que eu falei para o chefe que não sairia dali, porque eu estava ali para fazer uma entrevista que tinha sido autorizada pela Secretaria de Comunicação. E ele insistindo, eu fiquei. Eu falei, daqui não saio. Foi tenso, foi diferente de tudo que já tinha acontecido comigo, mas eu não ia abrir mão daquela entrevista, porque eles tinham a obrigação de falarem. Não era uma opção: eu não quero falar ou quero falar. Eles são representantes da sociedade. Aí a minha postura foi diferente. Então, é isso que quero te dizer, a gente não consegue agir da mesma forma porque as histórias são diferentes. O que a gente precisa ter é a sensibilidade para entender em que momento você se retira da cena, que momento você não se retira do jeito nenhum, que momento chora junto com a pessoa que está conversando com você, e que momento você consola. É isso. E isso vai realmente de sensibilidade.

JM: Após as conversas com os atingidos, conseguia ver que algo mudava neles?

DA: Essa é uma pergunta ótima, você sabe que ao longo do tempo, eu tenho 30 anos de carreira, e, principalmente nos últimos dez anos com a literatura, o que eu tenho percebido e o que os psicólogos falam muito que eu não entendia mas tenho percebido na prática, é que a escuta salva. É inacreditável o quanto essas pessoas se sentem valorizadas e se sentem acolhidas quando alguém tem interesse real pela história delas, pela memória de um amor, pela sua melhor metade que está ausente. Isso é poderoso, é tão transformador que às vezes uma relação que se inicia com livro, não fica só no livro, ela se sobrepõe ao livro, ela continua depois do livro. Eu acho que o maior exemplo são as famílias de Boate Kiss, que fazem parte da minha vida hoje. Tenho uma relação de amizade, a gente tem um grupo na internet, claro que não são todas, de cinco famílias, que a gente se fala todos os dias. Eles vieram no meu aniversário de 50 anos, de surpresa, vieram lá do Rio Grande do Sul para Minas Gerais. Então assim, é tão profunda essa conexão que você estabelece que vai para além da literatura. Então, eu sei como eles estão, eu sei quem está bem, quem está mal, quem está doente, como está o filho. Que uma das mães está com câncer, e eu estou acompanhando o caso dela, ela vai operar agora, é isso. Isso é um ganho, eu acho assim, porque você cresce como pessoa também. Isso nunca para mim foi fardo, nunca. Muito pelo contrário, acho um ganho incrível, porque você passa a ser uma narradora, você passa a ser porta-voz de alguma forma, você passa a falar, e você traz isso para a sua vida. Então, para mim não é fardo, não é peso, é uma alegria.

JM: Como caracteriza sua relação com as fontes de informação de Arrastados? Ainda mantém ligação com suas fontes (os atingidos de Brumadinho)?

DA: Sim, ainda mantenho, não com a mesma intensidade que eu tenho com as famílias da Boate Kiss. Mas para as famílias de Brumadinho eu sou vista como uma pessoa que está brigando junto com eles por justiça. Então todas as vezes que eles precisam que uma voz de peso possa falar, eles recorrem a mim. Então assim, eu vou ser sempre essa pessoa, porque não precisa me pedir para defender a justiça, isso faz parte do meu trabalho. Então, eles me têm como essa referência, de ser essa pessoa que vai estar sempre lutando por justiça. O livro foi lançado em 2022, a gente agora está preparando uma série para a televisão, uma série documental para a globo play e a gente ainda está em busca de novas informações. Então, não é porque o livro está pronto que a gente para de pesquisar, eu continuo a pesquisar ouvindo pessoas. Nós estamos trabalhando muito nos bastidores. Porque assim como foi o caso de Boate Kiss que levou 10 anos para conseguir que os autores fossem responsabilizados, e durante esses 10 anos, eu estive lá o tempo todo. Ninguém me pediu para ir ao julgamento, ao júri popular em Porto Alegre, eu fui, porque é o único lugar que eu podia estar naquele momento, fiquei dez dias em Porto Alegre.

Marta Maia: Aproveitando o gancho, gostaria que você falasse um pouco sobre o seu lugar como jornalista narradora. Como diz o jornalista Mário Magalhães, é uma luta da civilização contra a bárbarie. Você concorda?

DA: Eu acho que essa discussão de que o jornalista é imparcial é muito ultrapassada. Por quê? Porque o jornalista em tese não tem lado, ok! Mas ele tem que estar ao lado de quem sofre. Não tenho nenhuma dúvida disso. E não tenho a menor dificuldade para me posicionar dessa forma, de estar ao lado de quem sofre, porque geralmente quem é vítima é sempre o lado mais fraco. E aí sempre os autores… Aí você tem uma mineradora do tamanho da Vale que é uma empresa que mata a partir de decisões de seus funcionários, 272 pessoas, e ninguém é responsabilizado. Essa empresa passa do terceiro lugar com maior valor de mercado para o primeiro lugar depois de matar 272 pessoas. As ações dela passam a valer mais no mesmo ano em que ela mata 272 pessoas. Se você me perguntar de que lado eu estou? Não precisa nem perguntar! Então, eu acho que é isso. Agora, estar ao lado de quem sofre, não pode me cegar profissionalmente e nem macular ou interferir na minha ética. Qual é a minha ética? A minha ética é dar oportunidade para todas as pessoas falarem, o mesmo espaço, procurar essas pessoas realmente com o interesse: não só falar “procurei e não atendeu, vou deixar para lá; não!”. No caso de Brumadinho, eu procurei tantos os réus como todos os escritórios de advocacia de cada réu. Foram 19 e eram os maiores escritórios do Brasil. Em todos eles, eu fui 100% sincera: “estou fazendo um livro sobre Brumadinho, livro-reportagem, e eu gostaria muito de ouvir o seu cliente, saber o que tem a dizer sobre o que aconteceu”, e ninguém quis falar. Então, eu acho que é isso. Acho que o Mário Magalhães definiu muito bem: é a luta da civilização contra barbárie. Se você não se posicionar… Eu tenho o cuidado maior, você não vai me ver me posicionando politicamente, por exemplo, A contra B, isso para mim, Daniela, não estou falando de nenhum outro jornalista, não faço. Esse tipo de bandeira não é a que eu quero levantar. Agora em relação a questão da justiça, a gente ter um país profundamente desigual, em que a casa grande continua mandando na justiça, isso pode ter a certeza que vou a ser a primeira a gritar.

JM: Alguma vez presenciou atos de intimidação das suas fontes (atingidos) protagonizada pelas estruturas de poder (da empresa) de modo que elas não colaborassem consigo? Ou a si diretamente?

DA: Sim, diretamente e indiretamente, quando eu era repórter no jornal Tribuna de Minas, eu tive que sair da minha casa, porque a polícia mandou eu sair da minha casa porque eu tinha feito uma denúncia que envolvia uma máfia que aqui no Brasil chama DPVAT, ocorre quando você tem um acidente de trânsito, você tem direito a ser indenizado e acionar uma estrutura para receber o dinheiro. E esses advogados muito grandes ganhavam processos para as vítimas contra o estado e ficavam com o dinheiro delas. E aí eu denunciei cada advogado, consegui comprovar que eles não repassaram o dinheiro para as vítimas. Era muito dinheiro, para cada vítima era 30 mil reais, por exemplo. Era coisa muito grande. Foram centenas de vítimas. Eles foram presos. E aí, depois da prisão deles por conta da minha investigação, tive que deixar a minha casa. Como tive ameaças diretas num caso que eu ganhei um prêmio de melhor investigação jornalística da América Latina, porque eu denunciei o presidente da Câmara da minha cidade que era um dos maiores coronéis da política em Minas Gerais. Então assim, eu sempre fiz um jornalismo muito combativo que incomodava e tal. É um jornalismo que oferece muito risco. Na questão dos livros, por exemplo, a Vale tinha muito a perder se ela fizesse qualquer tipo de intimidação, qualquer coisa. Então, ela adotou outro caminho que foi o silêncio, que foi a questão de saber onde eu estava em Brumadinho, cada lugar que eu ia, eu sei que estava sendo monitorada, mas eles tinham muito a perder se fizessem uma ameaça para mim. Como o Flamengo também adotou o silêncio, não quis falar para o livro. Então, são estratégias que cada entidade, cada esfera encontra para poder lidar com essas questões. A gente quando faz um jornalismo como esse, tem que estar preparada porque o medo é real e constante, mas a gente tem que saber que está dentro do pacote.

JM: Fale sobre a sua relação com o processo da escrita do livro Arrastados. Como sua presença em Brumadinho contribuiu bastante para a própria produção do livro?

DA: A minha presença em Brumadinho foi fundamental porque para você ter uma boa escrita, você precisa ter uma excelente apuração. Você pode ser o melhor escritor, mas se não tiver uma boa apuração, você não vai conseguir fazer um texto rico. Então assim, o trabalho de campo em Brumadinho me permitiu não só conhecer as pessoas, mas eu consegui levantar tanta informação que me permitiu reconstituir o que aconteceu naquela sexta-feira 25 de janeiro de 2019, desde de manhã quando os funcionários saíram de casa para assumirem o turno de trabalho dentro da mineradora às 6h da manhã. É isso o que faz a apuração. Foi fundamental, porque eu estive no lugar onde as coisas aconteceram. Porque para você poder ir para lá como o livro te levou à Brumadinho, você não precisou sair daí onde estava, eu tive que ir ver para te contar. Se eu não visse não adiantava alguém me contar, eu não ia conseguir te colocar nesse lugar. Então o meu jornalismo é muito descritivo, mas isso tem muito a ver com a qualidade de apuração, que é uma apuração exaustiva. Foram mais de 150 pessoas entrevistadas, é um mundo de gente, fora o tamanho do processo, fora a quantidade de documentação, então você tem que estar disposto a mergulhar profundamente, a checar esses fatos, não adianta falar com meia dúzia de pessoas que você não vai conseguir contar essas histórias. Então, estar naquele lugar e ouvir muitas pessoas foi fundamental. Foi tão fundamental que quando eu percebi, eu tinha documentado quase hora a hora, tudo o que aconteceu a partir do rompimento e nas 96 horas  seguintes, isso me permitiu escolher como eu ia abrir o livro, como eu ia cruzar as histórias, como eu ia contar essas histórias. E aí as histórias são todas cruzadas, as pessoas vão se encontrando ao longo do caminho, a gente só consegue isso depois de juntar essas milhares de peças deste quebra-cabeça, ou seja, tem que quebrar a cabeça. É difícil, mas é isso que faz com que seja um trabalho de excelência, que vire referência. Hoje para você ser bombeiro em Minas Gerais, no curso para a formação de bombeiros, o livro Arrastados foi adotado como bibliografia obrigatória. Como Holocausto Brasileiro é hoje a bibliografia obrigatória do concurso para defensor público no Paraná. É sobre isso, de você ter um livro que vai virar referência.

JM: Como descreve as colaborações externas que teve na produção do Arrastados?

DA: O meu processo do livro é muito solitário. Eu faço todas as entrevistas, eu faço todo o texto, então assim, é um processo em que o autor é responsável por aquilo. Mas no caso de Brumadinho, a gente chegou a contratar o Marcelo Soares, a Marta conhece, ele é um jornalista especializado em dados. Porque o Marcelo tem uma qualidade que eu não tenho, ele consegue lidar muito bem com tecnologia. E chegou num momento da apuração que eu não tinha mais “braço”, por exemplo, para entender como é que a bolsa estava reagindo àquilo, porque eu não sou jornalista de economia, não entendo nada da bolsa, para mim era grego aquilo. E aí a gente contratou o Marcelo para fazer essa leitura do mercado para mim, que eu não sabia. Está tudo certo, não tem nada errado da gente precisar disso. A gente também contratou uma checadora, que é uma pessoa contratada para checar todas as informações que você traz no livro; para ver se tem alguma contradição de datas e outros detalhes. É um trabalho chato, mas é importante, porque faz com que a obra final tenha esse rigor jornalístico, qualidade, e sem erros. E fora as pessoas que eu entrevistei que não apareceram no livro, que eram especialistas em mineração, que me ajudaram a entender o que era a mineração porque não sabia nada sobre isso. Então, precisei entrevistar muitos especialistas que nem aparecem no livro, para eu poder me inteirar daquilo que ia falar para vocês, por exemplo. É assim que funciona, um trabalho muito profundo e complexo.

JM: “O que vale é o lucro”, é um dos tópicos do Arrastados. Será que existe futuro para os atingidos de Brumadinho?

DA: Olha, principalmente depois do que aconteceu em Mariana, que foi essa absolvição vergonhosa da justiça, é inacreditável que ninguém tenha sido responsabilizado por Mariana. A gente percebe que não é sobre pouco otimismo ou estou sem esperança, não é isso, mas isso reforça que a luta é dura, porque os poderes que estão em jogo são gigantescos que mandam no país na verdade. Ah, então está, não tem nada que possa fazer? Tem. O que posso fazer? Continuar escrevendo, continuar denunciando, continuar falando, não me calar diante de tudo isso. Então, eu acho que o livro já é uma denúncia, porque ele grita, está aí e vai ficar para a eternidade. Porque você leu, talvez um dos seus filhos que virão vão ler e vão entender que em 2019 teve uma mineradora que violou todas as regras e matou. Isso porque está registrado. E se essa história não é contada, é como se ela não tivesse existido. Então, o silêncio acoberta e alimenta a próxima tragédia. Jamais a gente vai estar em silêncio alegando a demora ou não ter a justiça, então não vou fazer nada; não! Porque a nossa função é essa mesma. A nossa função é mostrar qual é a verdade; está aqui, é isso aqui, e todas as omissões que continuam acontecendo. Porque eu acho que esse trabalho, nosso de jornalista, ele também não é para agora, é um trabalho de formiguinha sabe, e que vai mudando paradigmas. Para mudar paradigmas às vezes você leva décadas, séculos.

JM: É por isso no seu livro Arrastados e/ou em outras ocasiões destaca muito a construção da memória coletiva no Brasil?

DA: Exatamente é isso. Construir a memória é um caminho muito potente para a busca da justiça. De novo, se você não constrói a memória, você permite o esquecimento. O que é esquecimento? O esquecimento é a negação da história. Então, por mais que você tenha uma Vale tão poderosa que tenha propagandas maravilhosas, dizendo que eles são os reis da Amazônia e estão salvando o planeta, a gente tem o livro que fala não: eles mataram, eles continuam violando, eles colocam o lucro acima das pessoas. E é sobre isso. Eles nunca vão poder silenciar o livro. O livro está aí.

JM: Então o livro não constitui algum impedimento olhando o modelo comunicacional em relação aos outros modelos para informar as pessoas? Ou para descrever a dor e os acontecimentos que envolvem as pessoas?

DA: É. Eu acho que o livro é um instrumento de transformação social, não tenho dúvida. De transformação do olhar. Porque olha só, para quem não é desse mundo da mineração, que entre aspas não foi atingido, mas depois que você leu o livro, com certeza você é solidário àquelas famílias e aos atingidos. Você não é do Brasil, mas você desenvolveu dentro de si o sentimento de compaixão, de também não querer que essas situações se perpetuem, então você vai compartilhar essa história. É sobre essas transformações. O livro permite isso, que tira a gente do nosso lugar, da nossa zona de conforto e sacode a gente da nossa indiferença para dizer o seguinte: olha você não é atingido mas você também pode ser uma vítima, porque se esse modelo de mineração não mudar, ninguém está seguro. Como a família inteira que morreu na Pousada que não trabalhava na Vale, que estava a mais de dois quilômetros de distância da mineradora, e que morreu, porque estava dentro da Pousada na hora que houve o rompimento. Então, não é só quem trabalha em mineração que está correndo o risco. Então, eu acho que o livro faz isso. E outra coisa, se não tivesse mexido com você, não te mobilizaria para a sua pesquisa. É porque mexeu, te tirou do seu lugar, alguma coisa em você foi totalmente mexida, então você resolveu falar desse tema. Então é isso, já valeu.

  • [1] A entrevista teve como moderadora a professora Marta Maia (PPGCOM/UFOP), que é orientadora do mestrando Jacob Mapossa.
  • [2] IML significa Instituto Médico Legal da Polícia Civil, nesse caso se refere o de Belo Horizonte, capital do estado de Minas Gerais, no Brasil.

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