Gabriela escuta o testemunho de indígenas e dos rios, entes humanos e não humanos
Nesta entrevista realizada por Júlia de Souza Fonseca, jornalista e mestranda em Comunicação e Temporalidades na Universidade Federal de Ouro Preto, com Gabriela Carneiro da Cunha, artista, diretora cênica, atriz, pesquisadora, documentarista e escritora que desenvolve o Projeto margens – sobre rios, buiúnas e vaga-lumes, a entrevistada, que é também diretora da peça Altamira 2042, conta um pouco sobre sua trajetória de pesquisa que vem sendo realizada nos últimos anos e que constitui a construção de suas peças teatrais. Gabriela fala sobre sua presença na Assembleia do Mercúrio, realizada em 2022 com os povos Munduruku, relatando sua experiência de contato com a região amazônica, os povos indígenas, os rios e o processo de acolher os testemunhos dos povos floresta ao longo de seu trabalho, que resultou no desenvolvimento de uma reportagem intitulada “Ao amamentar, mães Munduruku podem envenenar seus filhos com mercúrio” publicada na plataforma Sumaúma de jornalismo, em outubro de 2022.
Júlia: Você não é jornalista. Você atua como cineasta, documentarista, como atriz. Como essas diferenças, no seu olhar, contribuem para a construção da reportagem? Como foi o processo produtivo? Pode me contar? Porque eu vou perguntar isso ainda. Mas a pergunta que mais me interessa é: como que você chegou nisso e como o seu olhar se atentou para esse tema?
Gabriela: Eu acho que eu vou contar um pouco de quem eu sou, porque aí chega no meu olhar. Bom, primeiro eu vou te agradecer muito, assim, por estar aqui. Muito bonita a tua pesquisa. E que bom que a reportagem te chamou a atenção, assim. Fico muito feliz, porque também é para isso, né? Para chamar a atenção para essa questão que as Munduruku estão vivendo e que o Tapajós está vivendo. Bom, mas eu sou do teatro, né? O teatro é o meu terreno, assim, de criação, de existência. Eu venho trabalhando no teatro como atriz e depois isso vai se transformando num lugar de direção, de pesquisa. Há 10 anos eu comecei um projeto de pesquisa em artes que se chama Projeto Margens – sobre rios, buiúnas e vaga-lumes. Esse projeto, ele se dedica à criação artística a partir do testemunho de rios brasileiros que vivem uma catástrofe. Então, são os três eixos da pesquisa. São os rios, testemunha. As mulheres, buiúnas. São as mulheres de cobra-grande, né? As mulheres que já têm na sua existência, na sua cultura, no seu modo de vida, uma relação com o rio. Onde o rio é gente, onde a própria existência delas também é de guardiã dos rios. Usando essa figura da buiúna, que é aquela que pare os rios, aquela que guarda os rios, a cobra-grande. E os povos vaga-lumes, que são os povos que estão sempre em risco de desaparecer. Sejam povos ribeirinhos, povos rio, povos indígenas, povos humanos e não humanos, né? Povos peixe, povos onça, povos sumaúma, que estão sempre em risco de desaparecer. Esse termo, vaga-lumes, os povos vaga-lumes, vem de um texto do Pasolini, que é um cineasta italiano, que escreveu, nos anos 70, eu acho, um livro, um texto escrito “O Desaparecimento dos vaga-lumes”, onde ele fala sobre… ele está falando sobre a Itália, sobre o contexto dos povos italianos, que, no contexto de terem vencido o fascismo na Segunda Guerra, ele fala que a gente venceu o fascismo em termos, porque, de fato, o fascismo se entranhou de tal modo na vida da Itália que hoje você tem todos querendo estar debaixo dos holofotes do fascismo. Então, ele está falando sobre povos que vão perdendo o seu modo de vida, fazendo uma relação com os vaga-lumes que ele costumava ver na Itália e que ele não consegue mais encontrar por causa das luzes do fascismo, as luzes do capitalismo. E aí, depois, o Didi-Huberman, que é um filósofo, escreveu O Desaparecimento dos vaga-lumes, que é… então, você tem que se mover em direção às margens, daí o projeto margens também, onde ainda é escuro, para encontrar os vaga-lumes.
Então, foi nesse sentido, desses povos que eles… eles estão sempre em risco de desaparecer, mas eles nunca desaparecem, porque eles estão sempre se movendo também para onde ainda é escuro, para onde a gente ainda consegue perceber esses brilhos. Então, esse é o contexto da minha pesquisa em arte, que é de onde eu venho. E aí, eu venho do teatro, mas também do cinema, também das artes visuais. Essa relação com os rios também começa a me provocar, a provocar o teatro que eu faço na sua forma estética. O primeiro rio que eu vou foi o rio Araguaia, onde vou fazer uma pesquisa sobre as mulheres que viveram, morreram à guerrilha do Araguaia, na ditadura militar brasileira. Mas, naquele momento, o projeto ainda era, assim, escutar as pessoas que vivem nas margens dos rios e à margem de certos processos históricos. Quando eu vou para o Xingu, eu fiz uma peça no Araguaia chamada Guerrilheiras, ou Para a Terra Não Há Desaparecidas, e um filme chamado Edna, sobre a Edna Rodrigues de Souza, que foi uma mulher que sobreviveu à guerrilha e a vários conflitos de terra no Araguaia. Depois, eu vou para o rio Xingu através de uma reportagem da Eliane Brum, uma reportagem chamada Notícias de uma Guerra Amazônica, Vítimas de uma Guerra Amazônica, que fala sobre Raimunda Gomes da Silva e o João Pereira da Silva, um casal de ribeirinhos que foram expulsos da sua ilha para a construção da hidrelétrica. E lá, através dessa reportagem, eu vou para o Xingu para ouvir o testemunho do Xingu sobre a barragem. Só que é só no Xingu que o projeto de pesquisa muda e vira o que ele é hoje, que é escutar o testemunho do próprio rio. Ele muda a partir da relação com essas pessoas, essas pessoas que me ensinam que elas podem ouvir o próprio rio. Então, ali, o projeto de pesquisa vira sobre linguagem, vira sobre escutar o testemunho de um rio, um ente não humano, um ente que eu, na minha cultura, uma mulher branca da cidade, eu não teria, não tenho, a priori, a linguagem para escutar um rio. Mas é na relação com essas mulheres buiúnas que eu vou aprendendo e fabulando junto com elas essa linguagem, essa escuta do rio.
No Xingu, eu criei essa peça chamada Altamira 2042, que é uma peça que viajou muito o mundo, viajou também o Brasil muito. E ali eu já começo uma coisa que é dividir no crédito, inclusive, a direção entre eu e o próprio Rio Xingu. O Rio Xingu também é diretor da peça, porque, assim, eu senti que ele realmente estava atuando nesse sentido, assim, junto comigo. Depois disso, a gente chega no Tapajós, cada rio eu fico mais ou menos três anos, e é curioso porque o tempo tem sido esse, sem eu querer forçar, o tempo tem sido esse. Chego no Tapajós para escutar o testemunho do Tapajós sobre a contaminação de mercúrio das suas águas pelo garimpo ilegal. Como que eu chego no Tapajós? Como que chega nesses territórios? O que eu tenho aprendido é que você chegar com alguém que já tem a confiança do território faz muita diferença. São territórios onde as pessoas confiam na experiência, não confiam só na palavra. Até porque são territórios muito espoliados há muito tempo. Então, eu chego no Tapajós com a Carolina Ribas, que é uma amiga, produtora de cinema, que já tem uma relação com as mulheres Munduruku, ela é produtora do coletivo de audiovisual Munduruku, e com ela eu vou para a Assembleia do Mercúrio, que foi onde eu escrevi essa reportagem, na terra indígena Sayuré Maibã, terra Munduruku. Então, a Alessandra Munduruku me convida para estar lá, para ouvir junto com eles a entrega dos resultados da pesquisa que a Fiocruz fez com eles. Eu acho que a Fiocruz fez essa pesquisa em 2019, o resultado só foi entregue em 2022, porque no meio do tempo teve a pandemia, e o governo Bolsonaro tornou muito mais difícil a entrada no território. Então, só em 2022 eles conseguiram ir, de fato, entregar esses resultados.
Então, eu estava lá nesse contexto, onde uma grande assembleia, eram centenas de pessoas, estavam lá para ouvir se estavam de fato contaminados ou não. Quando eu digo ouvir, eles foram ouvir nos termos da nossa ciência, porque eles já sabiam que estavam contaminados. Eles vão buscar essa pesquisa, pedir essa pesquisa, porque eles já sabiam, na sua experiência empírica, nos seus corpos, eles já sabiam que estavam contaminados. Mas, no embate com o Estado brasileiro, no embate com esse mundo não indígena, eles precisam sempre da nossa linguagem, de uma linguagem… É curioso, porque eles precisam que a linguagem daqueles que estão atacando, daqueles que estão contaminando, venha confirmar que a contaminação, de fato, está acontecendo. Porque, senão, eles não são reconhecidos. A sua experiência empírica não é reconhecida. Então, eu estava lá nesse contexto, e essa reportagem nasce dessa escuta. Eu fui para lá… Para você entender o que a gente está fazendo no teatro, nessa peça, tem uma coisa que eu defendo, de que um rio não é um tema. Um rio é uma linguagem. Então, cada trabalho nasce da linguagem de cada rio. O que um rio me provoca em termos de linguagem estética, cênica, no teatro? O rio Tapajós está contaminado de mercúrio, de metal pesado. O mercúrio é um elemento que estava nos primórdios da fotografia analógica. Aquela fotografia que eu nem sei se você tem idade para conhecer, mas que tinha filme que você revela com químico, papel e químico no laboratório. Então, a partir disso, seguindo o mercúrio, eu chego na fotografia analógica e essa peça que a gente está agora finalizando os ensaios, ela está se transformando num grande laboratório de fotografia analógica, onde a gente usa os mesmos elementos que estão num canteiro de garimpo, os mesmos elementos químicos que estão num canteiro de garimpo, estão também num laboratório de fotografia. Os mesmos elementos que podem fazer um rio desaparecer, podem fazer as existências desaparecerem, podem fazer as existências aparecerem. Elas podem matar um rio ou produzir uma fotografia. Então, com isso que eu tenho criado. E aí eu vou para lá para ouvir.
Sento com a minha câmera fotográfica analógica, com filme e tudo, e um gravador e começo a ouvir. A primeira fala foi da Alessandra, dando as boas-vindas, todos se apresentam, e o doutor Paulo Basta, que era o pessoal que está guiando essa pesquisa, começa então a falar e entregar os resultados. Ele faz uma explanação sobre o que é o garimpo, que elementos químicos o garimpo usa, como que o mercúrio se atrela ao ouro, porque o mercúrio é usado no garimpo para magnetizar o ouro, amalgamar o ouro. Mas esse ouro não pode ser vendido em Taituba, onde quer que seja, com o mercúrio. Então, depois que o garimpeiro acha o ouro, ele tem que tirar o mercúrio desse ouro, e esse mercúrio então é despejado no rio. Fora isso, também tem o trabalho das dragas no rio, que remexem o fundo do rio, e os fundos de rio amazônico já têm uma sedimentação de mercúrio. Então, o rio todo, o rio Tapajós, que era um rio azul, um rio verde, vai se tornando cada vez mais barrento. E eu achei muito forte isso, porque na fala deles era o rio vai ficando branco, o rio está embranquecendo, e ele está se tornando cor de leite. Essa era a imagem que eles traziam. Então, quando eu sento lá, Júlia, eu sento, obviamente, para ouvir a informação que o doutor Paulo está dando, que, de fato, as pessoas estão contaminadas, que, de fato, quanto mais próximo do garimpo, maior a contaminação. Os exames que eles fizeram em pessoas que estão numa terra indígena, numa comunidade que está mais próxima do garimpo, têm índices de contaminação ainda mais graves. E que essa contaminação, ela era especialmente grave em mulheres grávidas, porque o mercúrio é expelido pelo organismo da mulher grávida, pelo líquido amniótico e pelo leite materno. Então, esses fetos gerados nos úteros das mulheres, eles já estão sendo contaminados antes mesmo de nascer. E a contaminação do mercúrio, ela vai direto no sistema nervoso central. Então, ela vai causando danos cognitivos e motores, principalmente.
Eu sou uma artista, eu não sou uma jornalista. Então, a minha escuta passa pela palavra e pela informação, mas ela passa também por todo o contexto que está acontecendo em volta, por toda a cena, digamos. Ela passa por uma escuta do corpo das pessoas, por uma faixa que estava estendida, por uma chuva que se anuncia. Então, pra mim, ficou assim, ouvir esse homem, esse cientista, falando daquilo tudo, enquanto tinha uma faixa escrita, o futuro é agora, que eles penduraram ali. Mas ele já me dizia que era justamente o futuro daquele povo que já estava nascendo comprometido por causa dessa contaminação. Ele falava dessa contaminação das mulheres grávidas enquanto as mulheres Munduruku amamentavam. É uma assembleia muito povoada por criança. As mulheres grávidas amamentando fazem parte, não tem uma coisa tão distinta. Eu conseguia sentir o quão grave estava sendo a escuta para eles também. Porque era isso. O tempo todo que ele falava sobre essa contaminação das mulheres grávidas e das crianças era um silêncio, uma gravidade muito grande. Conseguir silêncio em uma assembleia de centenas de pessoas com criança, com tudo, é um feito. Só acontecia pela gravidade do que ele estava falando. Depois de ele entregar esses resultados, os Munduruku tomaram a palavra. Mas principalmente as mulheres tomaram a palavra. E as mulheres Munduruku são muito fortes. Elas são a liderança desse povo. Elas estão muito na linha de frente. E foi, de novo, muito forte ouvir o afeto que elas estavam. Elas estavam todas muito tomadas pelo que elas estavam ouvindo. Elas estavam com muita raiva e com muita tristeza por entender que… E elas propunham muitas imagens. O rio está branco. O rio está cor de leite. E é o leite que está contaminado.
Eu sou uma artista, eu não sou uma jornalista. Então, a minha escuta passa pela palavra e pela informação, mas ela passa também por todo o contexto que está acontecendo em volta, por toda a cena, digamos. Ela passa por uma escuta do corpo das pessoas, por uma faixa que estava estendida, por uma chuva que se anuncia. Então, pra mim, ficou assim, ouvir esse homem, esse cientista, falando daquilo tudo, enquanto tinha uma faixa escrita, o futuro é agora, que eles penduraram ali. Mas ele já me dizia que era justamente o futuro daquele povo que já estava nascendo comprometido por causa dessa contaminação. Ele falava dessa contaminação das mulheres grávidas enquanto as mulheres Munduruku amamentavam. É uma assembleia muito povoada por criança. As mulheres grávidas amamentando fazem parte, não tem uma coisa tão distinta. Eu conseguia sentir o quão grave estava sendo a escuta para eles também. Porque era isso. O tempo todo que ele falava sobre essa contaminação das mulheres grávidas e das crianças era um silêncio, uma gravidade muito grande. Conseguir silêncio em uma assembleia de centenas de pessoas com criança, com tudo, é um feito. Só acontecia pela gravidade do que ele estava falando. Depois de ele entregar esses resultados, os Munduruku tomaram a palavra. Mas principalmente as mulheres tomaram a palavra. E as mulheres Munduruku são muito fortes. Elas são a liderança desse povo. Elas estão muito na linha de frente. E foi, de novo, muito forte ouvir o afeto que elas estavam. Elas estavam todas muito tomadas pelo que elas estavam ouvindo. Elas estavam com muita raiva e com muita tristeza por entender que… E elas propunham muitas imagens. O rio está branco. O rio está cor de leite. E é o leite que está contaminado.
Então, para mim, esse rio que era azul virou cor de leite contaminado. Cor de leite materno contaminado. O futuro que é agora, que já está comprometido. E a fala da Leuza, que foi uma fala muito emblemática. É o nosso território, o nosso corpo, o nosso útero que está doente. Os nossos filhos estão nascendo doentes. Era uma fala muito precisa, muito aguda. É um grito. É uma fala que está na peça, inclusive. Que é o momento ápice da peça, em termos de tragicidade mesmo. E foi tudo isso que eu fui ouvindo. Depois a gente viu um filme, o filme do Bodanz, que é o “Amazônia, a nova Minamata?”, onde ele faz esse paralelo com o que aconteceu em Minamata, no Japão, com a contaminação de mercúrio. Que foi uma contaminação bastante mais grave, no sentido de que era direto metilmercúrio. As pessoas ficaram doentes muito rápido. Mas é um paralelo interessante também que ele faz com o que está acontecendo no Tapajós. A partir disso, eu já tenho uma relação com a Eliane Brum, de amizade. É com ela que eu chego no Xingu. Através de uma reportagem dela, a primeira vez que eu vou para o Xingu é com a Eliane. Ela fez uma agenda lá. Ela que me abriu portas no Xingu, em Altamira. E aí ela me pergunta se eu gostaria de escrever uma reportagem. Foi um desafio muito grande para mim. Quando ela me convida, eu fico feliz e, ao mesmo tempo, apavorada, porque eu não sou jornalista. Eu entendo a responsabilidade que tem e a diferença que há entre fazer uma peça de teatro e um texto jornalístico. Um texto jornalístico talvez requeira muito mais um… Não sei. É claro que a peça também não… Eu acho que a peça eu tenho mais espaço para fabulação do que um texto jornalístico. Eu tenho um compromisso com o realismo, com a realidade, com aquilo que está ali de fato acontecendo, do que numa peça de teatro.
Por exemplo, na peça a gente está fabulando muito essa entidade mãe do rio, essa encantada mãe do rio, que é quem se levanta nesse enfrentamento com o garimpo e com a questão da contaminação do mercúrio. Porque no final da assembleia eu perguntei para a Ediene Munduruku, perguntei como a gente cura o rio Tapajós. Ela falou que a gente tem que trabalhar com a mãe do rio. Tudo tem mãe. Floresta tem mãe, o rio tem mãe, peixe tem mãe, igarapé tem mãe. Tudo tem mãe. Então a gente tem que trabalhar com a mãe do rio. E foi muito forte para mim ouvir isso dela nesse contexto onde são as mães justamente que são as mais afetadas. E ao mesmo tempo essa convocação que ela estava trazendo, entendendo que a luta não é só uma luta aqui, nesse plano aqui nosso, que tem uma luta junto com o que eles chamam de um outro mundo, de um submundo, desse mundo encantado. A luta é junto. Então, isso para mim é algo muito forte, ainda mais num contexto em que logo depois eu também estava me tornando mãe. Então na peça eu encontro muito espaço para fabular isso, para fazer isso tudo existir, tudo fazer parte. Num contexto de uma reportagem, já é mais difícil. Ao mesmo tempo, é isso, eu não sou uma jornalista, eu sou uma artista escrevendo. Num primeiro momento do processo de escrita, eu acho que eu tentei ser uma jornalista, eu tentei escrever como se eu fosse uma jornalista. E foi a própria Eliane que recebeu a primeira rascunha do texto e falou “Gabi, o texto está muito bom, mas não parece você. Eu sinto falta de você”. E ela falou uma coisa que foi uma chave para transformar o texto no que ele se tornou. Ela falou, “você é do teatro, você cria cena”. Ela falou, “eu preciso ver isso no texto, a cena. Qual era a cena? O que você viu? Faz a gente entrar. Faz a gente ver junto com você. Faz a gente sentir junto com você”. Eu acho que isso foi uma puta chave que me trouxe uma liberdade muito grande para escrever e que eu acho que tem muito a ver também com a escrita da Eliane, com o que ela o que ela funda, o que ela traz, o que ela oferece como jornalista, como criadora da Sumaúma. O que a Sumaúma aporta também? Eu acho que é esse lugar que expande o jornalismo.
Nesse contexto dessa pesquisa que eu estou te falando, que é em arte, eu entendo porque eu vi nesses lugares que não se trata de teatralizar a Amazônia, mas de amazonizar o teatro. E é isso que eu tento fazer. E acho que a Eliane e a Sumaúma também fazem isso com o jornalismo. Amazonizar o jornalismo. Ou seja, abrir, provocar o jornalismo, expandir o jornalismo na sua linguagem, na sua forma para que a Amazônia, com tudo que a Amazônia é, possa caber ali. Então, eu acho que quando ela fala isso pra mim, ela me liberta, ela liberta o texto. E aí o texto cabe teatro, e aí o texto cabe Amazônia, e aí o texto cabe Tapajós, e eu acho que vai se fazendo um texto muito mais cênico, num certo sentido. E aí foi isso. Eu escrevi o texto em Altamira. Eu saí do Tapajós, saí de Itaituba e já fui direto pra Altamira pra ver amigos, pra ficar lá. Na casa da Eliane, inclusive, foi onde eu escrevi o texto. Então, foi lá que eu fui terminando o texto. Mas já com essa abertura de criar cenas. E pra mim foi muito importante, até pra peça, porque eu acho que foi a primeira, eu acho que essa reportagem é quase o primeiro roteiro da peça. Muito do que é a peça já está nessa reportagem.
Para mim, como artista, a diferença é que as minhas perguntas tinham muito mais a ver com… Por exemplo, eu perguntava sobre a contaminação e sobre tudo, mas eu estava atenta a, por exemplo, as palavras… Enquanto eles estavam falando em Munduruku, as palavras que apareciam em português. Eu estava atenta a isso, sabe? E assim, nossa, são só palavras da morte, da tragédia. O que isso me diz? Eu podia perguntar isso, eu podia perguntar… Na mesma, digamos, reportagem que eu perguntava, entrevista com elas, que eu pergunto sobre a contaminação e perguntas muito diretas, eu pergunto sobre a mãe do rio. Eu pergunto quem é a mãe do rio. Eu pergunto como é que a gente cura o rio. Eu pergunto se o rio pudesse falar, o que ele falaria. Se você pudesse me dar uma imagem do rio, que imagem seria essa? Eu percebo que elas, quando falam do rio, elas falam do rio chamando de ela. Elas falam, o Tapajós, ela está chorando, ela está triste. Então, eu pergunto isso, por que vocês chamam o rio de ela? Aí elas falam, porque ela é mãe, porque ela não sei o quê, porque ela somos nós, ela é mulher, ela é o nosso corpo. Então, eu acho que a diferença… É claro que eu não estou falando sobre todos os jornalistas, nem todos os artistas. Até porque, de novo, acho que a Eliane tem uma abordagem até nesse sentido mesmo. Eu acho que ela é muito artista no seu jornalismo.
Mas eu acho que o que permite um artista é essa fabulação da escuta, sabe? Se interessar também pelo que… Justamente, não pelo tema da contaminação, mas pela linguagem daquelas pessoas, pela linguagem da floresta, pela linguagem do rio Tapajós, por como a linguagem é articulada. Então, acho que é isso.
Júlia: Eu estou gravando, mas eu parei para escrever isso daqui, o que eu vou trabalhar com o que você está falando. Tem um autor e um estudo que eu estou fazendo da narrativa, que ela tem um lugar em que trabalha com o campo do fictício. Mas isso não significa que é um fictício que foi inventado. Trabalha com um lugar, um entrelugar, que é entre a realidade e a ficção. Você falou várias palavras que foram me atentando. E eu achei incrível você mencionar a sobrevivência dos vaga-lumes, porque eu trabalhei com esse livro, não agora, mas eu trabalhei com ele no meu TCC e na minha iniciação científica. E é interessante, porque quando eu entrei no mestrado, eu não ia pesquisar Sumaúma. A minha orientadora que trouxe essa sugestão. Então, é interessante ver as coisas se conectando. É interessante você falar dos afetos dessas mulheres indígenas. Inclusive, você usa uma expressão, um neologismo, que é a frase flecha, que eu achei muito interessante. E você falou, de novo, de coisas que são eixos do meu trabalho. O que acontece? Esse jornalismo de Sumaúma, o que eu estou dissertando, é um jornalismo de teor testemunhal. Ele não é só jornalismo, ele é testemunho. Então, ele é testemunho em que tem o testemunho na mídia.
Então, as fontes desse jornalismo aparecem na mídia com o seu testemunho quase integral. E tem o testemunho através da mídia, no qual quem lê é levado para aquele lugar. Então, por reportagem, eu imagino que deve ter sido realmente desafiador para você nessa primeira fase da escrita, até receber essa liberdade criativa, porque isso é um diferencial de Sumaúma. Eu não acredito que eles sejam precursores da narrativa amazônica. Não tem nada disso. Sei que tem um ruído com relação à atuação de Sumaúma na região, que envolve isso. Eu estou passando por isso pelo meu trabalho também. Mas eles têm um fazer jornalístico que é diferente e tem que ser considerado. É diferente. Achei muito interessante que muito na sua fala me trouxe esse estalar dessas conexões. E a questão do feminino é fundamental. Eu trouxe uma autora, que é a Gayatri Spivak, para falar de alteridade no pensamento feminista. Então, é muito tocante. Eu vou passar para a próxima pergunta, que está nessa linha. Eu tinha preparado nove perguntas, mas acho que várias delas você já respondeu. Quem sugeriu o método de produzir a pauta e a reportagem? Você já me contou que foi algo conduzindo. Você conversou com a Eliane, ela te pediu a reportagem, mas você já estava numa trajetória de acolher esses testemunhos dos rios. O processo produtivo, a construção e a execução de pauta, vem disso também? Você já estava com essas mulheres. Então, por estar em contato com você, a Eliane pediu essa reportagem? Quais foram os maiores desafios? Porque me parece que não teve uma proposição de pauta, por exemplo. Vamos escrever sobre isso daqui. Primeiro veio a vivência e depois a pauta. Então, é como se você tivesse vivido a reportagem primeiro, para depois traduzi-la em texto. Estou certa?
Gabriela: Foi exatamente isso. E eu acho que isso foi muito bom, porque talvez, se a Eliane tivesse falado comigo antes de ir, talvez isso tivesse moldado um pouco as minhas perguntas, sabe? Nessa própria coisa que falei, de tentar ser alguma coisa que você não é, às vezes, tentar ser uma jornalista, quando não é o que sou. Então, talvez eu tivesse tentado isso nas entrevistas. As entrevistas teriam sido mais entrevistas e menos conversas, talvez, assim. Então, acho que isso, nesse sentido, foi muito bom, que ela não tenha falado antes, porque eu estava ali com a minha escuta como artista para uma peça, para criar relação com aquelas pessoas, para entender se elas queriam aquela peça também, para me apresentar, para começar uma relação. Então, foi tudo muito nesse sentido, sabe? E aí, uma coisa que você falou sobre essa coisa da ficção, eu concordo muito. Tem uma frase, não sei de quem é, mas posso depois conseguir a fonte para você, mas é que a ficção é uma realidade que está para acontecer. E eu gosto muito disso, sabe? Porque em todo o meu trabalho, inclusive em trabalhos em sonhos, teve uma vez que eu tive um sonho com uma pessoa que eu amo muito, e que eu falava assim, você sabe como o documentário pressupõe uma realidade? Então, eu quero fazer um documentário das muitas realidades, porque são muitas realidades. Eu acho que essa diferença entre documentário e ficção, quando eu estou no cinema, quando eu estou no teatro, para mim ela interessa muito pouco. É claro que eu não vou ficcionalizar uma mentira, eu não vou dizer assim, olha, as pessoas estão contaminadas no nível que estava Minamata, ou as pessoas não estão contaminadas, não, não é isso. Mas quando alguém me diz, a gente vai curar o rio com a mãe do rio, isso está no mesmo estatuto da realidade, isso é real.
Então, como que eu, como artista, crio um espaço de escuta, principalmente, onde essa escuta possa ser recebida nesse estatuto do real, das muitas realidades, sem ter que ser uma coisa ou outra, mas ser e ser, e ser e ser. Então isso, eu acho que é isso, a fabulação é parte de qualquer narrativa, acho que é isso, acho que não tem uma busca pela verdade, a verdade é essa, acho que existe um testemunho, como você está dizendo, o testemunho é esse, foi sentido assim , foi percebido assim, está sendo percebido assim, por esse, por esse, por esse, por esse, por esse, por esses, por mim. Então, só para colaborar com isso.
Júlia: Você acha então, só para eu traduzir, que os desafios da execução dessa reportagem estão no campo da tradução do real ou outros desafios que você teve? Seja, por exemplo, se deparar com o seu eu na reportagem, porque são pautas muito sensíveis, ou, por exemplo, de viver o processo de, “ah, não, sou das cênicas e tive que escrever uma reportagem”, quais foram os seus desafios?
Gabriela: Eu acho que o desafio foi, o maior desafio acho que foi esse de a percepção e o acolhimento de que, como artista, eu posso contribuir numa linguagem jornalística, sabe? Mas, e estar ali, ao lado de mulheres vivendo uma situação muito grave, muito trágica, e como, como estar ali e como fazer desse texto uma ferramenta para elas, assim, como fazer desse texto algo que as fortaleça e não as enfraqueça.
Aí tiveram algumas questões, também, por exemplo, eu tirei fotos deles com o resultado dos exames, teve algumas escolhas, o que colocar na reportagem, a gente optou por não colocar essas imagens, tinham crianças muito pequenas, muito contaminadas, sabe, então, ainda que essas fotos tenham sido tiradas, elas não foram usadas, por entender que, também, algumas coisas não servem para nada. Eu tenho um pouco essa filosofia para mim, porque eu também ouvi isso, por exemplo, da Edna, no Araguaia, quando ela me contou uma coisa muito grave, assim, muito violenta que aconteceu com ela, ela me contou fora do contexto da filmagem, e ela falou para mim, ela falou, “Gabi, tem coisa que é tão terrível que não serve para nada, que não serve para peça, que não serve para filme, que não serve para nada”. Então, acho que tem isso também, sabe, tem esse lugar que, às vezes, a gente vê algo muito violento, mas acho que há uma pergunta, antes de já mostrar isso para o mundo, tem uma pergunta anterior, assim, a que serve, para quê? Isso vai fortalecer? Isso vai enfraquecer? Não é óbvio que vai fortalecer, não é óbvio que a denúncia vai fortalecer em qualquer situação, em qualquer contexto. Eu não tenho uma resposta para isso, tá? Assim, as minhas escolhas, elas vão sendo feitas de modo muito…
Júlia: Você não tem uma resposta para isso, né? A gente está num momento em que o pode ou não pode, o pra quê, o porquê, ficou muito elástico com as redes sociais. Então, eu tenho certeza que você passa por isso também, a menos que você não use mesmo Instagram, mas tem coisas que eu vejo nas redes sociais, em páginas de notícias que eu fico, meu Deus, pra quê? E aí eu vou ver, tem um milhão e duzentas mil visualizações, e quando eu vou ver, é simplesmente o erótico da morte, ou uma estética que está associada à pulsão de morte, que está associada a coisas que não deveriam estar ali, mas isso é minha opinião. Eu vejo tudo o que soltou, ele pensa de uma outra forma, então eu entendo esse lugar do inefável, que às vezes não se consegue traduzir e também não precisa traduzir, a gente não precisa falar tudo.
Ah, eu queria saber uma coisa: as fotografias. Teve algum repórter de Sumaúma que foi com você, ou ele foi lá depois?
Gabriela: Não, mas tinha o João Paulo, que eu posso te passar o contato dele, que é um fotógrafo freelancer, trabalha na Amazônia há muito tempo, é da Amazônia, de Belém. E ele estava lá também, e ele tirou várias fotos. A gente usou as fotos dele. Eu vou te, como é que eu compartilho aqui, compartilhar esse perfil. Eu vou compartilhar com você, que você pode entrar em contato com ele. E eu também estava tirando fotografia porque faz parte do trabalho, né?
Júlia: Sim, você falou que estava fazendo as analógicas. De que maneira você acredita que o teor testemunhal, no caso contribuiu ou contribui para a construção dessa reportagem e para a configuração da memória? Você acha que o testemunho ou o teor testemunhal contribui para a configuração da memória desses acontecimentos vivenciados nesses territórios amazônicos e como você acha que a sua reportagem contribuiu para isso, para essa configuração da memória, porque a sua reportagem tem um teor testemunhal muito forte. Você, assim como nas outras reportagens que eu escolhi, achei muito interessante você não ser jornalista e trazer isso. Você leva o leitor, você proporciona um testemunho ao leitor, o leitor está testemunhando, a gente vai lendo e a gente consegue ver aquilo ali junto com vocês. Então, você acha que isso contribui para a configuração da memória, de que maneira?
Gabriela: Olha, Júlia, essa palavra testemunho, ela é muito cara a mim, assim, né, tanto é que ela faz parte do conceito de toda a pesquisa. São os rios testemunho e o meu trabalho é ouvir o testemunho e dar a ver esse testemunho, né, dar a sentir esse testemunho como artista. Eu acho que quando a gente trabalha nessa chave do testemunho e de fazer, né, fazer o leitor ou o espectador de uma peça, o público de uma peça estar no lugar, eu acho que a gente, falando de teatro, a gente trabalha em outra chave que não é da representação, assim, no trabalho que eu faço, no teatro, eu não trabalho a representação, eu não faço a Alessandra ou a Maria Leuza, e nem chamo ninguém pra fazer, não tento representar aquilo que está acontecendo, o que eu tento fazer é atualizar aquilo que foi vivido, aquilo que foi ouvido, então é como se eu tentasse, atualizar no teatro a presença do Tapajós, presentificar o Tapajós ali, fazer com que o público ouça aquelas vozes, ouça o som da água, ouça o passarinho, a cigarra, o sapo que estava ali, ouça o som da draga, do garimpo, ouça a chuva, o vento, os cantos, ouça a própria voz da mulher falando sobre a cura da mãe, ouça a Alessandra falando, a Leusa falando do útero e não eu falando aquilo, né? Assim, então eu trabalho no teatro, eu trabalho com as vozes delas, eu não falo nada na minha peça, eu organizo as coisas de modo que o público ouça e veja aquilo que eu faço. Eu também tive o privilégio de ouvir e de ver. Então eu sinto que eu crio muito mais um espaço de escuta do que qualquer outra coisa, então eu gosto muito de pensar, muitas vezes as pessoas falam “ah, que trabalho importante, você tá dando voz a tal e a tal”, e eu falo, olha, eu não tô dando voz a ninguém, porque essas pessoas têm voz, o rio tem voz, os bichos têm voz e tá todo mundo gritando há muito tempo. Assim, o que não tem é escuta, o que não tem é ouvido para ouvir esses corpos, então o que eu crio é, é como eu digo, eu tô muito mais dando ouvidos a quem não tem, então eu crio muito mais um espaço de escuta e acho que isso também foi uma tentativa para o meu texto, né, muito, e com essa fala também da Eliane, que trouxe, tipo, cria cenas, né, então não é um lugar de tipo, “olha, eu vou fazer vocês entenderem o que tá acontecendo, eu vou escrever de um jeito que, através da minha compreensão, vocês vão compreender também”, eu acho que é criar um texto que faça, “venha para cá, era esse o lugar, o lugar era assim, tinha isso, tinha isso, tinha isso, e essa pessoa falou isso, e essa pessoa falou isso, enquanto ela falava isso, a chuva estava caindo, enquanto essa falava isso, uma faixa estava estendida dizendo isso”, então é, é fazer o que, assim, eu penso muito nessa coisa do Didi-Huberman, nesse deslocamento, ele defende muito essa ideia de que você tem que se deslocar. Então eu acho que é um deslocamento de si, em direção ao outro, é, mas para você ouvir outro, né, você tem que ouvir tudo que ele traz, assim, não é só a palavra, é tudo que ele traz. Eu estava lá ouvindo, eu estava sentindo o calor da Amazônia, a umidade da Amazônia, depois eu fui tomar banho no rio, que estava contaminado, eu bebo aquela água, então, né, já que o leitor não está vivendo aquilo, mas como que um texto, uma reportagem, pode também levá-lo? Como que uma peça de teatro pode também levar as pessoas ao trazer o próprio rio, né? Então é isso, eu tenho uma crença profunda no testemunho, no testemunho afetivo, né, no testemunho imagético, sensível, é muito mais do que em algum texto analítico, que para outras coisas também serve muito, assim, mas eu não tenho nem, na verdade, eu nem acho que eu tenho algum tipo de crença que alguém pode analisar alguma coisa sem se envolver profundamente.
Júlia: Sim e você me trouxe aqui. Eu não trabalhei com Didi-Huberman na dissertação, e eu não sei muito bem por que não, sabe? Eu acho que é porque é uma linha que minha orientadora não segue, mas eu vou dar uma olhada nele de novo, porque isso que você falou é muito parecido com o que eu tô querendo colocar no meu fechamento de texto, as considerações finais. Porque esse trânsito, e eu, ao longo da dissertação, coloquei várias vezes essa coisa do dar voz, mas isso me incomoda demais, e eu quebrei, quebrei, quebrei a cabeça com o que eu poderia trazer. Não é dar voz, porque essas pessoas têm voz, elas já são ouvidas, elas já estão gritando há 500 anos, desde que a primeira embarcação pisou aqui nesse país, então é o quê? Aí coloquei como focalizador da narrativa, porque você tem uma plataforma que acolhe essas narrativas e age como uma focalizadora para que outras pessoas que conhecem o trabalho ou do Watts, ou da Eliane Brum, ou dos outros jornalistas que estão ali dentro, ou dos jornalistas do programa Micélio, elas estão focalizadas ali dentro, e ainda assim é uma coisa que eu acho que não tem muito. O que você me trouxe, essa expressão que é de promover lugares de escuta, é muito interessante, só que você trabalha com outros recursos, que é o recurso sonoro, e aí se eu tivesse, por exemplo, analisando o Sumaúma como um todo, o veículo inteiro, eu acho que isso valeria, mas eu tô analisando essas reportagens especificamente, sabe, eu achei muito interessante isso que você falou, tá sendo um grande aprendizado conversar com você. Você acredita que o jornalismo, especificamente pode contribuir, porque a gente não vê muito essa contribuição com o jornalismo hegemônico como Folha, Estadão, a gente vê isso mais em jornalismo independente, mas como você acha que o jornalismo, em geral, imagina se todos decidissem fazer algo, para revelação das histórias e violências, apagadas ou banalizadas pelo processo colonizatório e pela violência de gênero e raça, você acha que o jornalismo pode contribuir, você acredita que o jornalismo poderia fazer algo, e como?
Gabriela: Eu acredito que o jornalismo poderia e pode e faz algo. Alguns fazem muito. Primeiro eu acredito que sim, tá, vou dizer primeiro que sim, porque eu acho que o jornalismo, tô tentando aqui pensar, assim, como uma pessoa não jornalista, mas, e aí eu não tenho como pensar muito no jornalismo geral, assim. Por isso mesmo, como uma não jornalista, sabe, o jornalismo, você vê, as pessoas que eu admiro, mas eu acho que tem uma coisa de, é, de, de ir atrás, um pouco nesse mesmo movimento do Didi-Huberman, assim, tem que é ir até a margem. A Eliane, eu me lembro, eu sei muito sobre o trabalho dela, eu li “A vida que ninguém vê”, é, li muito essa defesa dela também que não existe um jornalismo imparcial, né, é, então eu acho que na medida em que você entende o seu papel como jornalista, como aquele que vai trazer, trazer algo para o debate público, e o que é que você escolhe trazer para o debate público, e como você escolhe trazer para o debate público, eu acho que é um papel fundamental, mas não só na informação, eu não tenho uma crença de que a informação por si só, ela tem o poder de mudar alguma coisa, assim, até tem um termo em inglês, né, que as pessoas usam muito, nesse, até no lugar do ativismo mesmo, é tipo assim, aumentar a sabedoria, não a sabedoria, mas aumentar o conhecimento da população em geral sobre um determinado tema, então assim, eu não sei se mais pessoas saberem da contaminação de mercúrio faz com que os Munduruku, as Munduruku, tenham mais aliados nessa luta, e bons aliados nessa luta, eu não sei, eu não tenho essa certeza, é, portanto, eu não defendo isso, eu não defenderia essa ideia, eu não acho que a informação por si, ela é alguma coisa, eu acho que o debate público, ele sempre vai ser trazido com alguma intencionalidade, com algum desejo por trás disso, por trás, pela frente, explícito ou não, com alguma linguagem, com uma forma, com aliados específicos também, e aí eu acho que ele pode ser, sim, muito poderoso. A reportagem da Eliane, vítimas de uma guerra amazônica, foi uma reportagem que mudou a vida da Raimunda, eu sei que mudou, mudou a minha, criou muitos outros aliados, né, eu fui até lá através disso, eu chamei outras pessoas, a gente criou uma rede Buiúnas, que é uma rede de mulheres em torno de Altamira, a Raimunda conhece um monte de gente a partir disso, a Raimunda escreve um livro a partir disso, Cartilha da desenhagem, lança esse livro pela N-1, em São Paulo, lança depois em Altamira também, realiza um sonho… e eu acho isso muito poderoso, eu acho que ela, né, assim, então, eu acho que tem muita força, sim, eu acho que a gente tem reportagens históricas, tem reportagens, tem jornalistas históricos que conseguem mudar realidades, ou pelo menos fortalecer lutas, fortalecer pessoas, conseguir mais aliados, entendendo que, eu também acho que essas lutas, uma vida não dá conta, são lutas históricas, não é uma peça, ou uma reportagem, ou um jornal, ou um jornalista específico que vai mudar uma realidade inteira, né, mas ele vai se aliar a uma luta de anos e anos, e vai trazer outros, e vai trazer outros, e nessa força a gente não desaparece, porque se não fosse isso, talvez desaparecêssemos, assim, e povos desapareceriam. Então, eu acho que sim, como uma, eu acho que é mais uma tecnologia, sabe, mas eu acho que sim, assim como eu acho que os cantos também são, assim como eu acho que o teatro também é, assim como eu acho que fazer roça também é, assim como eu acho, entende, assim, eu acho que é mais uma tecnologia. Eu acho que, para mim, o que enfraquece, assim, é quando o jornalismo se aproxima muito da publicidade, eu, particularmente, tenho uma espécie de avesso à publicidade, eu acho que a publicidade é a linguagem do capitalismo, assim, acho mesmo, então, eu acho que quando o jornalismo, né, ele se aproxima disso, aí eu acho que ele perde sentido, ele vai, ou ele ganha outro sentido, ele ganha o sentido das forças hegemônicas, entendeu, porque a publicidade, ela está aí para fortalecer a hegemonia, né, as hegemonias, quando o jornalismo se aproxima disso, aí ele está para defender as forças hegemônicas, ele vai escolher muito bem do que ele vai falar e do que ele não vai falar.
Júlia: Tenho um capítulo na dissertação que eu chamo de apagamentos e vislumbres, o que ele apaga, o que ele vislumbra? O jornalismo hegemônico ou um jornalismo que não serve a determinados interesses da sociedade, serve a grupos sociais. Então, na sua reportagem, a quem ela serve? O quê que você acredita que é a importância de uma reportagem assim e quem ela pode impactar? Eu te digo que ela pode impactar inúmeras pessoas, mas quando você escreveu naquele momento que você ouvia aquelas pessoas ou durante o processo de produção da reportagem do que viria a se tornar a reportagem durante a escrita, você conseguia visualizar: “nossa, isso é importante porque…”, “isso daqui vai impactar porque…”, você tinha essas respostas, você tem essas respostas?
Gabriela: Eu só pensava nas mulheres que eu tinha escutado, eu só pensava na Alessandra, na Leuza, na Jeni, na Aldira, eu só pensava nelas, eu queria que elas lessem e sentissem que eu tinha escutado, é isso.
Júlia: Ah, tudo certo. Muito obrigada por me dedicar o seu tempo e eu acho que essa frase me trouxe uma perspectiva muito interessante de a quem servem essas reportagens no momento em que a reportagem honra as fontes que ali estão, eu sinto que a gente já cai num lugar de um jornalismo que é humanizador.
Gabriela: Eu acho que é assim que eu penso também quando eu faço a peça, sabe? Eu não sei o que vai acontecer com a peça, nesse sentido, entendeu? Assim, a peça vai impactar, a peça vai trazer aliados, a peça vai ser, a crítica vai gostar, o curador vai gostar, vai ser convidada para lá e para cá, para cá e para lá? Eu não tenho nenhum controle sobre isso, mas eu tenho como a cada dia de ensaio lembrar do que foi vivido, ouvir de novo e pensar… o que eu tento é, se a Alessandra tá aqui no ensaio, ela vai gostar? Ela tá gostando? Ela tá? E com isso eu não tô dizendo que não pode haver contradição. Assim, há na peça um momento em que a gente fala sobre contradições dentro do próprio povo Munduruku, tem uns que são a favor do garimpo, tem outros, né, assim, alguns poucos são a favor, a maioria contra, não tô dizendo que não possa haver contradição, que não possa haver debate, mas quando você, eu acho que quando você tá num lugar desse, numa situação tão crítica e que as pessoas abrem o espaço para você estar lá, testemunhando junto com elas, ouvindo o testemunho delas, de coisas muito sensíveis, assim, eu acho que a primeira medida são elas. Sim. Elas vão se sentir mais fortes, eu tenho pensado muito nisso, qual é a função da arte, assim, e o que eu tenho conseguido chegar hoje é devolver a vida com mais vida e fazer dos seres vivos mais vivos.
Então, é nesse sentido, sabe, a Alessandra vai ficar mais viva, a Leusa vai ficar mais viva, mais forte quando lê, quando vê a peça, ou não? Quando não, eu acho que a gente tem um problema.
Júlia: Sim. Perfeito. Gostei muito dessa fala também. Agradeço pela gentileza em contribuir, saiba que a reportagem impactou, eu estou aqui no interior de Minas Gerais, numa cidade desse tamanho chamada Itabira, lendo e relendo a sua reportagem no processo de seleção e eu tinha escolhido seis, aí eu tirei uma, aí eu tirei outra, e a sua ficou por causa disso, desse impacto de não ser escrita por uma jornalista, de ter uma sensibilidade no texto, de ter um movimento que eu acho que transcende algumas fronteiras do tempo também, eu senti que você ultrapassa as janelas do tempo na sua reportagem, e o mestrado na UFOP é comunicação e temporalidades. Então a questão de estudar, de passar por essas fronteiras do tempo, essa tomada de consciência é muito importante, um trabalho muito bonito. Te desejo todo sucesso na sua peça, se a sua peça vier para Minas Gerais, espero que, por favor, não esqueça de mim e mande uma mensagem.
Gabriela: Obrigada, querida, também, que bom, sorte aí na sua escrita, que seja linda essa defesa e que tudo aí que você está pensando também sobre o Sumaúma também ilumine o próprio trabalho, né, do jornalismo e do seu caminho.
Júlia: Obrigada e uma boa tarde para você.
Esta entrevista percorre e tem como foco principal a reportagem escrita por Gabriela Carneiro da Cunha para a plataforma Sumaúma de jornalismo, publicada em 11 de outubro de 2022, intitulada “Ao amamentar, mães Munduruku podem envenenar seus filhos com mercúrio” disponível no seguinte link: https://sumauma.com/ao-amamentar-maes-munduruku-podem-envenenar-seus-filhos-com-mercurio/
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