O Poeta do Cotidiano
Marta Maia
Meu sonho é poder acreditar nas pessoas, ainda e sempre
(Lourenço Diaféria)
É possível conhecer os hábitos, os costumes e até mesmo os problemas de uma cidade por intermédio de vários mecanismos como consultas a arquivos, livros, bibliotecas, depoimentos de moradores, entre outros. Agora, se a cidade se chama São Paulo aí a história muda de figura e entra em cena o cronista paulistano Lourenço Carlos Diaféria. Nascido no bairro do Brás, em 1933, este descendente de italiano ingressou no jornalismo já em 55, como copy-desk, no jornal Folha da Tarde. Mas é somente a partir de 64 que ele começa a escrever “estas bobagenzinhas”, que é como ele se refere a suas crônicas.
Falar sobre um cronista em uma época de imprensa factual e objetiva parece obra de ficção, mas não é não. Até pouco tempo atrás Diaféria escrevia regularmente no jornal Diário Popular, de São Paulo (já extinto), e, se depender do Seu Jaime, do Geraldo, do Seu Otávio, do Carol, do Naldo, da Silene, da Marta e de muitos outros leitores, ele não pára de escrever nunca mais.
O próprio Diaféria é quem conta sobre a sua relação com os leitores: “todos os dias, de manhã, enquanto tomo banho e penteio os cabelos, que vão partindo e me dizendo adeus e se tornando cada vez mais brancos, eu penso: tenho de escrever meu texto para algum leitor, que amanhã vai abrir o jornal e procurar o que escrevi”. Ele ainda acrescenta que procura prestar atenção “nas coisas miúdas do cotidiano. As pessoas se alimentam de miudezas, essa é que é a verdade, Nessas miudezas imperceptíveis está, muitas vezes, o petardo que alguém esqueceu que era um petardo”.
Diaféria é um homem de hábitos simples, que acorda cedo e faz uma pequena maratona pelo bairro do Sumarezinho, onde mora há mais de 30 anos. Passa na Farmácia da Heitor Penteado, na Lanchonete da esquina, na Casa de Carnes e na Padaria. Como não poderia deixar de ser, passa ainda na Banca de Jornais do Seu Otávio, que o conhece desde 74, “quando montou a sua Banca no bairro”. É neste lugar que ele fica mais tempo, afinal, segundo Seu Otávio, ele lê todas as manchetes dos jornais, comenta quase todas e sai levando o Diário Popular e mais algum outro jornal.
“Ele é uma excelente pessoa. É muito humilde, pois não gosta de falar quem ele é; não fica contando vantagem em cima de ninguém. Todo dia de manhã a gente conversa sobre tudo. Na semana passada ele fez uma crônica sobre o Edmundo que deu o que falar, aliás o Seu Lourenço adora futebol”, diz o Seu Otávio de Macedo, que não pára de comer os pequenos pães de queijo de um saco que parece estar sem fundo.
Se o Diaféria tem alguma responsabilidade sobre o fato ninguém sabe, mas pelo menos nesta Banca – com exceção dos finais de semana – o Diário Popular era mais vendido. Não é pra menos. “Naquele pedaço”, como gostam de dizer alguns moradores, o Seu Lourenço é muito popular. “Acho que é a pessoa mais importante do bairro”, afirma, com orgulho, o Seu Carol, um dos proprietários da Drogaria Real.
O Seu Carol lembra que só descobriu que o seu cliente mais assíduo era o mesmo Lourenço Diaféria que ele já conhecia da época da Folha de S. Paulo, quando leu o nome dele no cheque. Para ele, “que começou a conhecer mais o bairro graças ao Seu Lourenço”, a leitura das crônicas do Diaféria tornou-se um hábito incorrigível. Ele enfatiza o nível cultural do cronista, que, apesar de ser uma pessoa muito simples, “acaba sempre se sobressaindo em qualquer roda de conversa, porque ele é uma pessoa com uma visão muito ampla, pois sabe fazer uma explanação sobre qualquer assunto”.
As impressões, tão positivas, das pessoas que o conhecem se valem da conduta de um homem que acredita nas pessoas e no sonho de “que um dia todos nós, e nossos filhos, nossos netos, nossos irmãos, não precisem prostituir o coração e o cérebro para ter o direito à uma vida digna”, e vida digna para ele “é o direito a uma maternidade, o direito ao teto, o direito a uma velhice sem pavores, o direito de viajar sentado no ônibus, o direito de almoçar e jantar se tiver vontade de almoçar e jantar, o direito de comprar livros, o direito de ter tempo para ler, o direito de ir e voltar do trabalho sem levar um tiro. Enfim essas coisas insignificantes”. Insignificantes? Questiona.
Diaféria, que não compra Biscoitos Aymoré, desde a década de 50, por causa da demissão de vários operários após a realização de uma greve, observa que algumas pessoas acham que não é mais necessário indignar-se com coisa alguma. “Está tudo melhor do que estava no tempo em que matavam pessoas no cárcere e se dava a desculpa, oficial, de que a vítima tinha morrido atropelada ao atravessar a rua com farol vermelho. Logo, pra quê indignação?”. Mas, como sempre, ele joga uma pitada de esperança no caldo que parece insosso: “sobramos nós, os que nunca ficamos em cima do Muro de Berlim para nada e continuamos a preferir o Guaraná à Coca-Cola, não por motivos ideológicos, mas porque o Guaraná é feito de guaraná, e a Coca-Cola eu não sei do que é feita, e nos recusamos a vender a alma, o cérebro, o coração e a opinião própria por um prato de faisão. Enfim, restamos nós, os ingênuos que continuamos a achar que é possível deixar com um mínimo de decência o pedaço de esquina onde moramos”.
O cronista paulistano, que está sempre atrapalhado com seus horários, e, mesmo assim é “chegado a uma conversa”, garante que “arrumar” tempo para ouvir é uma questão de sobrevivência humana. “Ouvir como?”, pergunta. “Andando nas ruas também se ouve muito. Trocando duas palavras aqui, duas palavras ali. Com este ou com aquele. Depois os compromissos urgente obrigam a gente a desligar os fones e os microfones. Em cinco minutos de ouvir, é possível descobrir onde está o calo e a unha encravada da pessoa que conversa”.
Como todo bom cronista, ele não se cansa de contar histórias. E uma delas demonstra justamente esta paciência para escutar: “numa certa cidade do interior, um estudante disse que queria conversar comigo. Tudo bem, eu disse. Ele começou a falar, falar, falar, sem parar. Falou durante duas horas e pouco, sem parar. Eu ouvi. No fim, ele disse: ‘aqui, nesta cidade, não tenho com quem conversar’. Daí eu vim embora de ônibus e dormi a viagem inteira (mais de seis horas). Eu estava esgotado de tanto ouvir. Mas não tenho mais essa paciência toda”.
O futuro da crônica não faz parte das preocupações de Diaféria. Ele recorda que há cerca de seis anos, dizia-se que a crônica estava com os dias contados. Isso não ocorreu e tudo indica que dificilmente irá ocorrer. Para ele antes da crônica acabar “vão acabar os engraxates, os homens-do-realejo e o amolador-de-faca. Enquanto houver cartomantes e clientes de cartomantes; enquanto houver jogo-do-bicho, enquanto houver leitores de horóscopo, haverá crônicas e cronistas. O cronista (e a cronista) também tem todo o direito de alimentar a ilusão humana”, conjectura.
Para Inácio de Loyola Brandão, outro importante cronista brasileiro, a crônica está sendo revitalizada. “O que acontece hoje é que não tem um cronista como Rubem Braga, que falava sobre qualquer assunto, mas falava sobre um Brasil pequeno. Atualmente há o cronista que fala da política, da questão social, do cotidiano. E eu posso citar vários deles: o João Ubaldo, o Marcelo Coelho, o José Simão, o Mário Prata, o Zuenir Ventura, o próprio Diaféria, entre tantos outros”.
Loyola lembra da popularidade de Diaféria na década de 70, quando este escrevia na Folha de S. Paulo: “durante anos ele foi um cronista de São Paulo muitíssimo lido”. E não era só pelas crônicas publicadas no jornal, pois em 76, a Editora Símbolo lançou 12 livros de vários autores e Diaféria, que estava entre eles, era um dos campeões de vendas, segundo Loyola. “Naquela época a Editora marcou várias noites de autógrafos em conjunto. Eu me recordo que na mesa em que estava o Diaféria formavam-se longas filas. Eu, o Plínio Marcos e os outros chegávamos a ficar com ciúmes. Um dia não agüentei e fui verificar de perto aquela história. Sabe qual era o motivo da fila? É que ele fazia longas dedicatórias com uma letra impecável”, complementa.
Lourenço Diaféria, o cronista de São Paulo, diz “que é preciso ter olhos de saudade e de perseverança para não se mandar a cidade às favas, ficar de mal com ela, nunca mais olhar para a cara dela”. Suas histórias mostram uma cidade composta por personagens e ambientes que estão acima da perda de memória que parece capitanear a chamada sociedade “pós-moderna”. Em uma de suas crônicas, publicada esse ano, ele fez uma brincadeira com a Mooca, bairro paulistano, e isto ocasionou uma grande confusão em que até um delegado de polícia assinou um protesto que foi enviado ao Diário Popular.
Confusões a parte, Diaféria se defende afirmando que os indivíduos que protestaram acham que ele não conhece a Mooca. “Ocorre que eles é que não conhecem a alma da Mooca. E essa eu conheço. Conheço a Mooca de quando o Moinho Santo Antônio era moinho de farinha de trigo; e não casa noturna. Da mesma forma que conheço o bairro da Água Branca desde quando as três chaminés das Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo soltavam fumaça de sabão em pedra e não eram tombadas pelo Patrimônio Histórico. Da mesma forma que conheço a Lapa desde quando a Praça Cornélia era o melhor lugar para namorar na Zona Oeste e desde quando o Olympia não pertencia aos espanhóis e era, simplesmente, o Cine Nacional, onde Clark Gable, Dorothy Lamour e Anselmo Duarte enchiam de emoção a sala escura das sessões noturnas das quintas-feiras, em que mulher pagava meia entrada”.
Os problemas que a cidade apresenta, que não são poucos, deixam o cronista irritado, entretanto ele aponta os quatro piores defeitos que o tocam de perto: “sapato molhado em dia de chuva; ônibus Patriarca-Lapa todos os dias; motorista de táxi de madrugada no Terminal Rodoviário Tietê; e propaganda do Maluf na TV Manchete”.
Certa vez perguntaram para o Gabriel Garcia Marquez quem teria sido sua melhor leitora e ele disse que provavelmente teria sido uma leitora russa que copiou a mão o seu livro Cem Anos de Solidão, para tentar compreender melhor o conteúdo. Se Lourenço Diaféria tem ou não o melhor ou a melhor leitora é difícil afirmar, mas pode-se dizer que conta com uma amiga e leitora que todo escritor gostaria de ter. A história de Marta Ziller e o cronista daria até um bom roteiro de cinema.
Tomando chá de pêssego, enquanto os olhos azuis (ela que é descendente de alemães) brilham ao lembrar do passado, já que as crônicas de Lourenço perpassam boa parte de sua memória afetiva, Marta relembra que seu pai morreu lendo um texto em que Diaféria citava um fato ocorrido com sua família. “Meu pai, na época, tinha 90 anos e estava lendo uma crônica . Enquanto ele lia, chegou a falar “Lídia”, que é o nome de minha mãe e que constava no texto. Após a leitura, fechou o livro e , algumas horas depois, ele faleceu”.
Ela conta que resolveu entrar em contato com Diaféria por intermédio de uma carta que começou a escrever em dezembro de 83 e terminou no dia do aniversário do cronista, em 28 de agosto de 84. “Comecei a escrever a carta no dia do meu aniversário e fui tentando mostrar para ele que muita coisa que ele escrevia eu gostaria de ter escrito. Fiz muitos comentários sobre algumas crônicas e disse que gostaria de entregar a carta justamente no dia de seu aniversário, que coincide com o aniversário de um grande escritor alemão, que é o Goethe”. Nesta carta, que passou das 40 páginas, ela ainda contou que estava microfilmando e encadernando todas as crônicas dele.
A resposta de Diaféria só veio no final do ano quando ele resolveu conhecer aquela que estava fazendo algo que ele nunca fez: o arquivo de seus textos. Ele não chegou sozinho, junto estavam dois presentes que ela faz questão de mostrar (pelo menos um deles) – bonecos de barro representando uma dança folclórica – já que o outro, um presépio, se quebrou. Marta conta que, no início de seu interesse pelas crônicas, o seu marido chegou a ficar com ciúmes, chegando a dizer (quando olhava aquele monte de jornal espalhado pela cama) se o Diaféria também iria dormir com eles. “Entretanto bastou meu marido conhecê-lo para que os dois também se tornassem amigos”.
Marta, que é professora de música e alemão, revela que a partir da leitura das crônicas de Diaféria ela se interessou mais pela literatura brasileira, já que sua formação sofreu forte influência alemã. Ela assume a preferência explícita pelo cronista ao analisar os motivos que o fazem tão singular: “ele tem uma profunda esperança e isso talvez falte para os outros cronistas. Outro aspecto que considero essencial é que ele tem prazer em consultar o dicionário, garantindo assim, e através da sua sólida formação cultural, um vocabulário muito rico. Eu não conheço ninguém que use a palavra com tanta sabedoria e arte. Ele é um artista da palavra”. E para confirmar tanta admiração ela vai buscar na infância dele outro dado interessante, pois já com três anos de idade (embora ainda mamasse no peito da mãe) o cronista já sabia ler.
Um leitão está sempre na mesa do cronista na ceia do final de ano. O por quê dessa informação? É que após ler uma das crônicas intitulada Que leitão é este?, escrita em 82, Marta resolveu atender à uma reclamação do cronista que lamentava não ganhar nada de final de ano e que gostaria muito de ganhar um leitão. É verdade que após esse episódio ele até chegou a comentar com Marta que achava “melhor parar de resmungar, senão, vai saber o que posso receber daqui pra frente”. “Para chegar a qualquer lugar, o segredo é não desistir no meio do caminho”. Esta frase, “perdida” na crônica Recado pro bolsinho da camisa (de 83), foi que estimulou Marta Ziller a aprender, “após os 40 anos de idade”, tocar órgão de tubo. “Ele escreveu este texto para um office-boy. E, quando li esta frase, resolvi escrevê-la numa cartolina que passou a fazer parte do meu cenário de estudos. Todo dia acordava as 5h e estudava o máximo que podia, sempre olhando para a frase e pensando que o caminho é sempre difícil, mas como é bom quando se consegue ultrapassar as dificuldades. Senti uma satisfação muito grande por poder tocar este órgão no casamento de minha filha”.
A dedicação e respeito que a professora tem por seu cronista predileto não delineiam uma via de mão única. Vale a pena transcrever um trecho de uma carta escrita em agosto de 90: “Acontece, prezada Marta, que este livro só sai publicado graças ao estímulo, à coragem e ao apoio que você tem dado a meu modesto trabalho”. O invisível cavalo voador, revela mais uma faceta do escritor, que escreveu vários textos para crianças e adolescentes.
Diaféria, que gostaria de ter um milhão de amigos como o Roberto Carlos, diz que Marta é a sua mais paciente amiga, afinal para ele “amizade sem paciência deve ter outro nome, menos amizade”. Ele garante que tem poucos amigos, “seguramente mais de seis, que é o número mínimo para segurar as seis alças do caixão”. Ele ainda recorda alguns amigos que já morreram “bem mais cedo do que deveriam ter morrido, mas não tive nada a ver com isso. Apenas me conformei”. Hoje em dia “eu tenho um compadre, amigo de infância, que diz que eu sou mais que amigo; sou um irmão para ele. Deve ser verdade. Esse amigo, amigo dos tempos da primeira calça comprida, é o cara com quem eu mais discuto, brigo, do qual eu mais discordo em certos assuntos. Mas concordamos num ponto, essencial. Ele tem paciência comigo, e eu tenho paciência com ele”. Mas é seu filho caçula quem leva a frase de “melhor amigo”.
“Isso já foi para as calendas”. Esta expressão é utilizada por Diaféria para abster-se de falar sobre seu enquadramento pela Lei de Segurança Nacional no final da década de 70. Para ele, os episódios do passado devem ficar lá, no passado mesmo. “Falar de censura é o mesmo que falar de carrocinha de cachorro; é desenterrar defunto”.
Se ele não fala, outros falam: “o que aconteceu com o Lourenço Diaféria foi uma grande injustiça, foi uma arbitrariedade da ditadura. Acho um absurdo ele ter sido preso e processado”. Inácio de Loyola Brandão, que faz questão de se pronunciar sobre este episódio, acrescenta ainda que o Diário Popular deveria ter feito grande publicidade com o objetivo de divulgar a presença deste importante cronista em seus quadros.
Muitas outras vozes se somam a voz de Loyola com o objetivo de condenar a atitude do Ministro da Guerra em 77, Sylvio Frota, que solicitou ao Ministério da Justiça a abertura de inquérito contra o jornalista. A leitura de jornais da época revela que muitos jornalistas e vários setores da sociedade manifestaram solidariedade ao cronista. Esta história começou quando Diaféria, no dia 1º de setembro de 1977, publicou a crônica Herói. Morto. Nós., que narrava o gesto heróico de um sargento do exército que pulou em poço de ariranhas (no zoológico de Brasília) para salvar um garoto de 14 anos. O garoto sobreviveu, mas o sargento não.
“Prefiro esse sargento herói ao Duque de Caxias. O Duque de Caxias é um homem a cavalo reduzido a uma estátua”. “O povo urina nos heróis de pedestal”. “Esse sargento não pensou se, para ser honesto para consigo mesmo, um cidadão deve ser civil ou militar”. “O povo prefere esses heróis: de carne e sangue”. Esses verdadeiros petardos, entre outros, foram lançados por Diaféria através do texto em questão. Como as Forças Armadas consideraram insultuosas suas palavras, Lourenço acabou sendo preso no dia 15 de setembro de 77. Permaneceu nas dependências da Polícia Federal, em São Paulo, durante cinco dias.
O processo instaurado contra o cronista gerou muitas controvérsias, afinal ele foi julgado pela Justiça Militar e acabou sendo condenado por 8 meses de detenção, com base no artigo 219 do Código Penal Militar, por ofensa às Forças Armadas. O advogado do escritor, Leonardo Frankenthal, recorreu ao Supremo Tribunal Federal, que reformou a sentença do Superior Tribunal Militar e (finalmente), em 12 de fevereiro de 80, o escritor foi absolvido.
Não é possível dimensionar o papel que este episódio desempenhou na carreira do cronista, já que ele mesmo não gosta de falar sobre o passado, entretanto muitas pessoas, entre elas escritores como Inácio de Loyola Brandão ou Carlos Heitor Cony, pensam que Lourenço Diaféria deveria ter seu valor literário amplamente reconhecido. Mas parece que isto não ocorre, pois basta citar a dificuldade para se encontrar alguns de seus livros em qualquer livraria. Reedição? Essa boa notícia ainda não foi publicada em nenhum jornal.
O Brasil de hoje é mais democrático do que foi numa determinada época, observa Diaféria. Mas ainda há graves problemas. Entretanto ele sonha “com uma realidade em que as pessoas pudessem, ou possam, um dia, ter garantia de trabalho honesto, e poder viver graças a esse trabalho sem precisar fazer trambiques. Veja, não imagino um mundo sem trambiques e trapaças. Isso me parece impossível”. Entretanto ele não deixa de ter uma enorme fé no futuro, conseguindo passar para os seus leitores essa enorme esperança, afinal, como diz Marta Ziller, “o Diaféria fala ao nosso coração”.
Making of da matéria-ensaio
Foi logo me receitando remédio para a sinusite. Quando li os nomes dos remédios (homeopáticos) que estava tomando, ele disse:”Ah, então você vai sarar. Mas não pode lavar a cabeça e dormir ou tomar vento…”. Assim começou meu contato (telefônico) com Lourenço Diaféria. Para justificar minha voz anasalada tive que falar que estava doente e, antes mesmo de saber o motivo do telefonema, lá estava ele me fornecendo dicas sobre a doença. Entretanto bastou falar em entrevista para que seu humor se alterasse. “Olha, eu vou te passar uma fonte excelente. Trata-se de um senhor de 90 anos que escreveu verdadeiras preciosidades sobre São Paulo. Vou te passar o endereço. Ele é de Monte Sião…”. Expliquei que a coisa era com ele mesmo. Após quase 20 minutos ele acabou aceitando. Mas só por escrito, afinal “eu escrevo melhor do que falo”, apressou-se na justificativa.
Depois vim a saber que Diaféria não costuma dar entrevistas. Só que jornalista que se preza não costuma desistir logo na primeira tentativa. O desafio estava lançado, pois esta matéria deveria ser elaborada com referenciais do chamado jornalismo literário, que procura dar maior ênfase a humanização do texto. A perspectiva delineada pelo cronista não iria me auxiliar muito nesta empreitada. Pensei (e como pensei) que as perguntas – que seriam respondidas por fax – deveriam envolventes o suficiente para garantir um bom perfil do entrevistado e ainda possibilitar mais alguns contatos com o mesmo.
Seguindo as pegadas do jornalista e escritor Tom Wolfe (um dos precursores do chamado New Journalism) consegui “bolar” 12 perguntas que buscavam conhecer mais os sonhos, idéias e valores deste cronista. As informações factuais, cronológicas, foram buscadas no Banco de Dados da Folha de S. Paulo, em alguns de seus livros e ainda com Marta Ziller, que mantém um excelente arquivo sobre Diaféria em sua casa.
Antes de continuar contando os bastidores da produção desta matéria, vale registrar o porque do meu interesse em falar sobre este “senhor” escritor. Já havia lido algumas crônicas do Diaféria através da coleção Para Gostar de Ler, da Editora Ática e já conhecia a história da prisão dele (contada pelo meu professor Edvaldo Pereira Lima), entretanto não o conhecia pessoalmente. Isto ocorreu em um Simpósio sobre Jornalismo e Literatura, promovido pela Secretaria de Cultura do Município de São Paulo. Fiquei encantada pelo modo dele encarar a profissão e a vida. Tanto que fiz questão de trocar algumas palavras com ele ao final da palestra. Também fiz questão de procurar saber mais sobre sua vida e sua produção literária. Não deu outra: quando o professor Edvaldo e a nossa turma da disciplina Jornalismo Literário Avançado I resolvemos definir que “Histórias de Vida”seria o eixo comum de abordagem das matérias que deveriam ser elaboradas, percebi que já havia decidido quem seria o meu alvo.
As perguntas formuladas para o cronista me renderam seis folhas de fax. Acho que consegui um bom material. Mas não era o suficiente. Além do material de pesquisa, faltava uma proximidade maior da vida cotidiana de Diaféria. E foi ele mesmo que acabou fornecendo a pista essencial, pois perguntei a ele quais seriam seus melhores amigos e o nome de Marta Ziller apareceu em destaque. Não tive dúvidas, pedi um auxílio à lista telefônica e, em alguns minutos já estava conversando com Marta.
Esta descendente de alemães também mereceria uma matéria, pois é uma pessoa extremamente cativante. Basta dizer que falei (por telefone) com ela às 21h e, no dia seguinte, de manhã, estava tomando chá de pêssego em sua casa. Foi uma conversa que jamais será esquecida. São Paulo estava com uma das temperaturas mais baixas do ano, mas bastou um pouco de conversa e eu já estava me desvencilhando do casaco que vestia e me transportando para o universo deste ser humano incrível. Acabei lendo mais algumas crônicas, ganhando um livro do Diaféria que ainda não tinha e até lendo em voz alta (Marta pareceu gostar da idéia, pois sentou-se em uma cadeira e ficou ouvindo com uma nítida expressão de deleite) uma crônica que eu não conhecia e que ela gosta muito. Marta, que chegou a ir até o Brás só para conhecer o local onde nasceu Diaféria, conseguiu me convencer a também procurar uma editora que aceite lançar um livro de crônicas dedicado às mães, já que o cronista tem muitos textos sobre este tema. Perdemos a noção da hora e o horário de sua aula de música é que nos chamou a atenção para o relógio.
Falei diversas vezes com o Lourenço (sempre por telefone) e consegui me aproximar mais ainda do seu jeito de ser. As vezes ele se mostrava, um pouco “ranzinza”, outras vezes mais bem humorado chegando até a me chamar de Martinha, mas quando eu tocava no assunto de que seria interessante falar pessoalmente com ele, aí entrava o homem reclamando da falta de tempo, dos compromissos. Então achei que se fosse até o seu bairro poderia visitar o cotidiano deste “artista da palavra”. Após permanecer quase um dia neste bairro, em especial nas imediações da casa do cronista, o que ficou foi uma grande vontade de morar ali. Mas voltemos ao assunto. As pessoas me receberam com muita educação e simpatia. Era o que eu precisava para completar o cenário de vida do Lourenço.
Tive um pouquinho de trabalho para falar com o copeiro da padaria, pois o movimento estava grande. O jeito foi pedir para ele fazer um suco para mim e, enquanto as laranjas iam sendo “trucidadas”, pude bater um papo com o Naldo. O resultado da conversa acabou nem indo para o texto, mas eu falei com mais gente que também não vai ler suas palavras publicadas. É que eu fiquei com receio de fazer um texto muito extenso e cansar o pobre do leitor que com essas coisas de Internet e o grande fluxo de informações (além da correria do dia-a-dia) acaba não tendo muito tempo para saber como anda a vida de uma pessoa que é tão preocupada (no bom sentido) com a nossa vida. Também não posso deixar de citar o Geraldo, da Casa de Carnes Girassol e o Seu Jaime, o açougueiro desta Casa, que conhece o Diaféria desde 1961.
Tentei ainda, conversar com nomes importantes do cenário jornalístico e literário que tiveram algum tipo de contato com Diaféria. Após muitas tentativas, consegui mesmo foi falar com Inácio de Loyola Brandão e com Carlos Heitor Cony, que fizeram alguns comentários sobre o cronista, sempre ressaltando a qualidade do seu trabalho profissional. Também conversei com várias pessoas que já leram e ainda lêem o Diaféria e, em geral, obtive boas impressões.
Devo confessar que tive muita dificuldade para sair do texto convencional, por isso preferi não abusar muito da criatividade. De qualquer forma (não vai aí nenhum trocadilho) o texto saiu. Fiquei bastante envolvida com este trabalho, mesmo mantendo outras atividades, e posso afirmar que foi uma das matérias mais apaixonantes que fiz em toda minha vida. Vale ainda ressaltar a importância do trabalho que o professor Edvaldo Pereira Lima vem desenvolvendo junto à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Embora eu sempre tenha me preocupado com a direção que o jornalismo está seguindo (rumo aos fatos, ao imediatismo) foi através de suas aulas que pude conhecer uma das possíveis saídas para o jornalismo convencional. Ele nos fez ver que é preciso compreender o mundo de uma maneira sistêmica e holística e que o jornalista é um ser humano antes de ser um jornalista. Pode parecer obviedade, mas infelizmente a prática não demonstra isso.
Deixe um comentário