Talita acredita em um jornalismo que seja ético e ajude a colocar luz em questões ocultas
Nesta entrevista realizada por Júlia de Souza Fonseca, jornalista e mestranda em Comunicação e Temporalidades pela Universidade Federal de Ouro Preto, com Talita Bedinelli, jornalista, co-fundadora de Sumaúma e atual editora-chefe do veículo de comunicação, a profissional conta um pouco sobre a construção de duas reportagens emblemáticas para Sumaúma – uma delas, intitulada ‘Por que os garimpeiros comem as vaginas das mulheres Yanomami’, que inaugura o trabalho do veículo e outra, intitulada Não estamos conseguindo contar os corpos’, que percorreu o mundo com a denúncia da catástrofe vivenciada pelos povos Yanomami após anos de negligência ao longo do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro. Talita fala sobre o trabalho de Sumaúma, conta mais acerca da rotina produtiva e dos critérios de produção noticiosa, pauta e execução das reportagens e detalha como o veículo trabalha para construir grandes reportagens de teor testemunhal que têm grande impacto social.
Júlia: As minhas quatro reportagens do corpus[1], Talita, são as seguintes: “Por que os garimpeiros comem as vaginas das mulheres yanomami?”, claro, “Ao amamentar, mães Munduruku podem envenenar seus filhos com mercúrio”, “Não estamos conseguindo contar os corpos” e “Está todo mundo contaminado por mercúrio, crianças, velhos e grávidas”. E eu vou começar com uma questão mais geral e depois eu queria saber, especialmente, se possível, mais sobre o processo de produção dessas reportagens que eu vou analisar pontualmente, uma a uma. Como é construído esse processo de pauta dos temas trabalhados e como é a rotina editorial de Sumaúma?
Talita: A gente funciona como uma redação convencional, a gente tem reuniões de pautas, então as pautas são discutidas com as redações inteiras nessas reuniões, que são semanais, e a gente começa a pensar a partir daí, né? Grande parte das nossas matérias são matérias de fôlego, então são mais aprofundadas, grande parte de viagens de campo. Então é nesse momento das reuniões de pauta que a gente começa a idealizar essas ideias, diria que é um processo muito participativo também, que todo mundo dá opinião e ajuda a pensar na melhor forma de conduzir essas reportagens. Mas especificamente essas matérias que você trata, elas tiveram um caminho distinto. A primeira matéria das mulheres Yanomami é a nossa matéria de estreia, eu sou uma das co-fundadoras, então quando a gente começou era uma equipe muito pequenininha, era a Eliane Brum, Jonathan Watts, eu, a Verônica Goyzueta e a Carla Jiménez, e a gente queria, assim, a gente tinha um projeto, era uma semente muito pequenininha ali que deu pra começar a fazer toda essa parte burocrática de construir empresa e essas coisas… mas aí a gente conseguiu fazer um site e a gente queria fazer a primeira reportagem que fosse uma matéria de impacto, que tivesse uma cara diferente do tipo de matéria que a gente costuma ver, tradicional. O yanomami pra gente parecia naquele momento o tema mais urgente a ser tratado, então a Eliane trouxe a ideia da gente ir no território e trouxe a ideia que a gente fizesse a reportagem pelo viés das mulheres, porque são as que menos, geralmente em situações de conflito as pessoas mais vulneráveis são as mulheres, mulheres e as crianças. Tem muitos, muita gente invadindo território, tem muitas situações de violência sexual né, violência física e as mulheres são geralmente as grandes vítimas, ao lado das crianças. E eu já tinha tido uma experiência com o território Yanomami em 2016, se eu não me engano, 14 talvez, preciso olhar direito, acho que foi 2014, quando eu trabalhava como repórter pro El País Brasil. Eu fui pro território e aí fiz a matéria sobre a volta do garimpo. O garimpo naquele ano estava começando a voltar, teve uma grande explosão garimpeira na década de 80, e em 92, com a demarcação do território, em 92 conseguiram fazer a desocupação do território, o território ficou mais ou menos livre desse garimpo muito forte, ao longo dessas décadas… mas em 2014 começou a voltar, então fui pra lá com uma equipe da FUNAI, e a gente foi em várias aldeias. O território é muito difícil de chegar, ele é muito isolado, do restante de boa vista e da cidade mais próxima ali no Amazonas também. Já chega de avião, precisa pegar um avião que demora três horas pra chegar em muitos lugares do território, é um voo super complicado de monomotor que as pistas são pequenas, não é uma viagem fácil.
Então, eles vivem em uma condição de isolamento relativa né, tem acesso da equipe da saúde, muitos saem e vão pra cidade, mas as mulheres, especialmente, poucas falam português, elas ainda vivem muito dentro da aldeia. Quem sai geralmente são os homens pra ir pra cidade, pra fazer compras, a não ser em situações de saúde, de crianças, geralmente as mulheres acompanham. Então eu, quando fui lá em 2014, tive essa dificuldade, porque eu queria muito ouvir o depoimento das mulheres, mas era muito difícil entrevistá-las porque, óbvio, eu não falo a língua delas e elas não falam a minha língua e as entrevistas eram sempre mediadas por um homem que era yanomami, geralmente de confiança delas, mas, claro, a gente sabe que essas situações de violência são, às vezes, muito delicadas, a mulher não vai falar pra um homem assim. E ainda mais um homem da comunidade, às vezes o próprio homem está envolvido nessa violação de alguma forma e tal… então a Eliane trouxe essa ideia de “a gente vai, vamos fazer com as mulheres, mas a gente vai levar uma intérprete, uma mulher intérprete do yanomami, para que a gente possa ouvi-las na própria língua delas, se não a gente vai ter mais do mesmo”. Então a matéria surgiu daí. Essa matéria surgiu dessa necessidade de criar uma grande matéria, de fato, da identificação de que existia um problema muito grave que precisava ser contado e do fato dessa intenção de contar esses problemas de uma perspectiva que não é uma perspectiva tradicional de contar histórias. Aí as outras, eu não sei dizer muito como a do mercúrio surgiu, a própria Gabriela Carneiro da Cunha que fez essa matéria, ela é uma cineasta, uma artista e atriz também e ela acabou de fazer um documentário com o Davi Kopenawa, “A queda do céu”, que foi pra Cannes, e ela estava no território Munduruku para fazer uma série de intervenções de cinema se eu não me engano, eram cenas de cinema, gravar alguma coisa, e aí ela propôs a pauta, ela falou “ah, eu queria contar essa história” o território dos Munduruku é muito difícil, é um território muito complicado porque eles estão muito divididos ali, o garimpo é muito forte em muitas regiões, tem muitos indígenas que são para o garimpo, então chegar no território é sempre um desafio para a imprensa no geral… então a gente achou que era uma ótima oportunidade de contar uma história a partir de alguém de dentro, então a história nos foi trazida. A história dos corpos das crianças que a gente publicou em janeiro do ano passado ela veio um pouco nesse processo que começou com a matéria das mulheres yanomami, porque quando a gente foi a gente ficou lá uma semana depois, a gente foi com a Ana Maria Machado, que é a intérprete em yanomami, a gente fez todas as entrevistas, foi uma operação de guerra, depois posso te contar os detalhes assim, porque a gente não tinha como acessar essas mulheres que estavam nas aldeias onde a gente queria ir, porque elas estavam próximas ao garimpo. Então a gente teve que tirar todas as mulheres que a gente queria ouvir e levá-las para a aldeia, que é uma aldeia mais preservada. E aí a gente ficou cinco, seis dias fazendo entrevista com elas em yanomami com a Ana como intérprete, foi uma imersão assim, super, a gente tomava banho junto, comia junto, fazia tudo junto, então eu acho que a gente criou um laço muito grande quando a gente publicou essa matéria com o próprio território né, porque as pessoas confiaram no nosso trabalho, viram que é um trabalho sério. Então a gente continuou recebendo muita denúncia de dentro do território ao longo do ano de lideranças que estavam lá, de pessoas que trabalhavam na área da saúde dentro do território… então chegou em novembro do ano passado, a gente pensou “ah, temos que fazer alguma coisa”, a gente começou a receber muitas fotos de crianças mesmo assim, sabe, aquelas fotos bem… as que a gente publicou, muitas a gente nem publicou porque eram muito fortes, e a gente começou a ter esse processo, essa pauta chegou a partir de dentro do território, diversas pessoas de dentro do território nos procuraram e disseram: “ó, tá acontecendo, as pessoas estão morrendo de fome, alguma coisa precisa ser feita”. Era no final do governo Bolsonaro. E aí a gente falou “bom, vamos fazer”, né, mas aí tem a delicadeza, quando você recebe coisa que você não viu, não foi você que foi atrás e tal, a gente tem que verificar, ter certeza absoluta que aquelas informações são verídicas, então a gente começou um processo ali de comprovação, de pedir autorização pra poder publicar as fotos, porque pros yanomami as fotos tem um papel muito distinto, publicar uma foto na internet pra eles é um grande problema, porque eles acreditam que quando a pessoa morre precisa se desfazer de tudo, inclusive da imagem, e se você coloca uma foto dessas na internet nunca que essa foto vai desaparecer. Eles queimam tudo lá nas aldeias, então a gente teve que pedir autorização para as lideranças, foi um processo ao longo de dois meses e, em janeiro do ano passado, a gente conseguiu publicar. Então ela também veio a partir do território, acho que são duas matérias, tanto mercúrio quanto essa, que vieram a partir do território, uma do território dos próprios indígenas e outro de uma pessoa que tinha um contato muito próximo deles. Em geral, varia muito esse processo tem coisas que a gente tem ideia que surge da cabeça de alguém e viram pauta, tem coisas que são trazidas por repórteres freelancers que viram pauta, tem coisas que vem… o que eu percebo hoje, depois de anos que a gente existe, é que a gente tá criando mesmo uma rede de confiança com as pessoas do território, então a gente tem sido bastante procurado né, para que as pessoas denunciem o que tá acontecendo, tem muita confiança no trabalho, então isso também é uma forma de discutir pautas. Me alonguei muito né?
Júlia: Não, não, você respondeu, assim, eu ia fazer uma pergunta, eu perguntei sobre processo produtivo, eu ia perguntar como foi a construção e execução de pauta mesmo dos garimpeiros, então você já passou por isso, quais são os maiores desafios para execução, você passou por isso também, teve toda a questão de intérprete, vocês trazem muito isso dentro da própria reportagem, e pensando nisso eu queria saber especificamente dessa matéria, já que você tá tratando dela, e passando um pouco pelas outras, como você acredita que o testemunho contribuiu para essa reportagem? O testemunho especificamente.
Talita: O meu testemunho?
Júlia: O testemunho de vocês, ou das pessoas que falaram com vocês, o testemunho das próprias fontes… porque a minha pesquisa, eu to pensando na pauta, eu mencionei assim pra você, mas só pra você entender, eu estou em um processo metodológico que meus eixos norteadores são a relação entre jornalista, pauta e fonte, e jornalista e processo produtivo e os meus operadores metodológicos são a memória, o testemunho e a narrativa, e a alteridade também… então, eu estou tentando entender o que deixa as reportagens de Sumaúma tão diferentes. Mas o que torna esse jornalismo de vocês tão diferente? Além de, claro, o tamanho das reportagens ou o visual do site, ou a experiência estética que vocês proporcionam e eu acredito, o que eu estou dissertando sobre, é o papel do testemunho. Então esse testemunho das fontes, esse testemunho dentro do processo de execução de pauta, e eu queria saber se você acredita que ele tem um papel, sim ou não, por exemplo, e como ele contribui para construção das reportagens, ao seu ver.
Talita: Eu acho que a questão do texto pra gente é fundamental, ainda que a gente esteja sempre flertando com as linguagens, que a gente goste de outras linguagens e que a gente queira, sim, investir nessa necessidade mesmo de se comunicar de outra forma, pra gente o texto é fundamental, porque eu, particularmente, acredito que as pessoas se conectam com vida sabe, quando elas leem um texto, elas não querem saber os números, elas não querem saber dados, elas não querem saber… claro que tudo isso é importante, mas elas querem saber como aquilo, aqueles dados e aqueles números afetam a vida de um lugar, seja a vida do rio, a vida da árvore, a vida da floresta, quanto a vida das pessoas que vivem ali. Então o testemunho ele é fundamental, porque toda vez que a gente vai orientar um repórter que vai pra campo, a gente faz uma reunião prévia pra dizer o que a gente tá esperando da matéria, questões e segurança que é pra discutir. Uma coisa que eu sempre falo é: o leitor precisa falar com você, a gente tem a obrigação como repórter de colocar o leitor naquilo, naquela cena, é como se a gente tivesse que carregar o leitor com a gente, pra estar ali, sentar, conversar com aquela pessoa, e isso é um trabalho muito difícil mesmo, porque é um trabalho que exige muita descrição, um olhar muito apurado desse entorno, de quem é essa pessoa, tomar cuidado com os clichês que às vezes a gente tem mania de ah “pessoa com a pele machucada de sol” a gente sempre recorre a clichês ou a adjetivos pra descrever cenas. Então o testemunho ele é realmente fundamental, se a gente não está lá, a gente não consegue contar essa história direito, é muito diferente. Eu trabalhei muito tempo, comecei minha carreira sendo telerepórter da Folha, Agência Folha, então o que eu fazia era apurar a matéria por telefone, era outro nível de reportagem. Então, sim, eu acho que existem duas etapas, existe o testemunho do próprio repórter que está ali, o testemunho do fotógrafo, que às vezes é um testemunho muito complementar ao do repórter e que é muito precioso também essa variedade de olhar. Essa própria matéria dos yanomamis, das mulheres, não sei se você reparou que as fotos elas têm todas uma intervenção por cima, de um desenho, porque a gente conversou muito, eu e o Pablo antes, a gente falou sobre como a gente ia fazer pra retratar essas mulheres que a gente não poderia mostrar o rosto delas, obviamente. Elas estão em uma situação de insegurança muito grande, como a gente traria isso sem fazer aquela coisa clichê dos jogos das luzes, ou sempre a mulher de costas e tal né, e aí a gente teve a ideia de fazer com que elas desenhassem o que elas viam ali no território e como a gente não conseguia ir até o território, a gente pede muito testemunho… como eu não sei o que tá acontecendo na aldeia dela que tá sendo atingida pelo garimpo, porque eu não posso chegar lá, que não é seguro, porque as pessoas estão armadas com fuzil, a gente trouxe então essas mulheres para esse lugar seguro pra conversar. Mas a gente queria saber como era lá, então a gente pediu pra que elas desenhassem, o que é o garimpeiro pra você, como você vê o garimpo no seu território. Então elas trouxeram também esse testemunho visual dentro da reportagem, e aí o Pablo teve essa ideia maravilhosa que foi sobrepor as fotografias delas com as cenas que elas mesmas desenharam, como se a gente tivesse colocando elas naquele contexto, então é sempre muito precioso assim, que a fotografia tem um outro olhar. E ainda tem o testemunho das outras pessoas que é também fundamental, a escuta é muito fundamental, ela tem que ser uma escuta pausada, precisa ser uma escuta com tempo, que muitas vezes a gente não tem. Como eu disse, eu fui telerepórter depois fui trabalhar na Folha de S. Paulo, e eu cobria cidade né, às vezes eu ia fazer uma reportagem, sei lá, ia contar uma história dentro de uma comunidade, e aí tinha que escrever aquilo pra aquele dia… mas muitas vezes eu sentava ali, sabe, só o fato de você sentar com as pessoas, tomar um café com a pessoa, conversar, isso já traz uma outra vida para a reportagem, as pessoas se sentem mais abertas pra compartilhar o que elas testemunham no dia a dia. Então isso também é fundamental, essa relação de confiança com as pessoas para que elas possam te contar o que só elas veem, só o que você vai ver, que é diferente. Então as nossas reportagens tentam trazer um equilíbrio entre esses mundos, para tentar construir essa verdade, que a gente tenta com diversas fontes e, enfim, colocar tudo ali pra alinhar tudo para que a gente consiga entregar para o leitor algo mais próximo que é estar ali naquele lugar vivendo aquela experiência. Então ele é fundamental mesmo, o que a gente faz é impossível fazer por telefone, por exemplo, ainda que às vezes a gente faça, a matéria dos corpos, por exemplo, foi uma matéria que eu fiz toda por telefone, mas com o testemunho das pessoas que estavam em campo, com as entrevistas das pessoas que estavam lá, que mandaram as fotos e tal, eu tentava trazer muito esses elementos: “como que foi? Como você viu?”. Tem uns relatos muito fortes de como foi ver muitas pessoas morrendo ao mesmo tempo, ter que fazer uma lista de mortos e tal, então sempre tentar trazer um pouco esse momento das pessoas para dentro da reportagem, ainda que por telefone, mas é muito pior.
Júlia: Aproveitando que você mencionou a “não estamos conseguindo contar os corpos” que me parece, então, também ter sido feita por telefone, eu queria saber como foi construída essa pauta. Você já falou que um pouco derivado da “porque os garimpeiros comem as vaginas das mulheres Yanomami”, mas assim, como foi a construção da pauta, essa construção narrativa, e o que você acredita, essa matéria teve muita repercussão, ela é de 20 de janeiro e três dias o Governo Federal estava em polvorosa, foi um caos.
Talita: No dia seguinte, no mesmo dia, o Lula foi para Boa Vista.
Júlia: Foi no dia seguinte? O Lula já estava em Boa Vista? Então foi muito rápido, em questão de menos de uma semana já tinha uma repercussão interplanetária mesmo. Eu queria saber o que você acredita ser o motivo da repercussão desta reportagem e como foi essa construção narrativa mesmo dessa reportagem, a pauta, como foi esse processo.
Talita: É então, como eu falei, essa a gente começou a receber muitas fotos do território lá pra novembro, assim, novembro, dezembro… fotos bem assustadoras, essas fotos que a gente publicou né, essas crianças muito magras, os relatos de casos de malária. E a malária, ela tem um problema que quando ela ataca, as pessoas ficam tão adoecidas, que elas não conseguem nem levantar da cama pra fazer a roça, por exemplo, e aí quando você não faz a roça no tempo certo, você fica sem ter comida o ano inteiro. Então teve muito isso, a malária estava descontrolada e com a presença dos garimpeiros lá, os rios poluíram, então eles bebem água do rio, teve muito caso de diarreia, então tinha muitos relatos bem emblemáticos dos territórios que a gente começou a receber. Paralelamente a isso, eu tinha pedido, através da Lei de Acesso à Informação, na primeira matéria das mulheres, um monte de dados dos 3 primeiros anos do governo Bolsonaro, dos anos anteriores, e faltava o último ano do governo Bolsonaro, que a gente ainda não tinha os dados. E aí eu falei, bom, era novembro, dezembro, e a gente ficou verificando as informações, ligando para as lideranças, e checando as informações que chegavam para a gente e seguindo mais gente ativamente, né, procurando pessoas no território para confirmar as informações pra ter certeza absoluta de que era aquele cenário. E aí mudou o governo, em janeiro entrou o governo Lula, e quando mudou o governo, minha experiência com dados é sempre essa, o momento pra você pedir dados que são difíceis de conseguir é no momento da mudança da gestão de partidos, porque eles estão muito interessados em mostrar o legado que eles estão recebendo. Então eu tinha todos os dados de todos os anos, mas faltava o último ano do governo Bolsonaro, então a primeira coisa que eu fiz em janeiro foi pedir para o novo governo os dados complementares, pra eu poder fechar os anos do governo Bolsonaro, que a gente tinha essa suspeita, já tinha visto nos três primeiros anos que havia tido um aumento de óbitos de crianças menores que 5 anos por causas evitáveis, quando não tem atendimento médico, falta vacina, falta acompanhamento. E aí eles me deram, demorou também, não foi rápido, eles deram uma enrolada e eu fiquei pressionando e tal, e aí eles mandaram os dados, eu fiz a soma e o resultado estava comprovado que havia aumentado muito, 34% no governo Bolsonaro, a mortalidade das crianças, e a gente tinha também um apanhado de detalhes dos tipos de morte e tal. Então, foram dois trabalhos paralelos, com a ajuda da Eliane Brum também que foi atrás de entrevistas, falou com as lideranças e recebeu também muita coisa dela mesma da situação do território. Pra Ana Maria Machado que tem uma rede muito importante dentro do território que foi nossa intérprete na primeira matéria, então a gente continuou apurando a situação do território e levantando os dados, então eu acho que o mérito dessa matéria foi esse, porque a gente conseguiu combinar os números, mas também mostrou o que aqueles números significam, que é as mortes das crianças por causas evitáveis e tal, e as fotos eram muito impactantes. Então foi uma união ali de coisas que deixaram essa matéria muito forte, as imagens circularam muito nas redes. Logo que a gente publicou, no dia 20 de janeiro, ela viralizou e começaram a compartilhar loucamente, e aí entrou no radar do Ministério Dos Povos Indígenas, a Sônia Guajajara fez um comunicado falando da situação, falando que é inaceitável e, lembrando, era troca de governo então pro governo novo era muito importante esse posicionamento porque não era uma falha do próprio governo Lula, então a Sônia falou e logo depois o Lula falou, e aí quando o Lula falou a coisa explodiu. E aí no dia seguinte o Lula decidiu ir para lá, e quando ele foi ampliou o ciclo de notícia, porque saiu só da nossa matéria e todo mundo foi cobrir, telejornais, e aí depois o Fantástico foi e fez aquela matéria da Sônia (Bridi) super forte, que ela carrega as crianças no colo.
E aí foi isso, teve essa repercussão toda assim… teve mesmo. Eu lembro da gente fazer uma busca ativa por Sumaúma no Google e saiu até em jornal de Pequim sobre essa situação, circulou muito, viralizou muito mesmo. Mas eu acho que é uma combinação de fatores, tem a coisa da matéria ser muito forte, transformam a matéria em uma coisa muito forte, imagens fortes, dados fortes, relatos fortes, e tem também a mudança de governo, acho que isso também foi fundamental, talvez se fosse no governo Bolsonaro não teria tido tanto impacto sabe, como a matéria das mulheres, ela circulou bastante, a gente publicou fora do país, em outros lugares, em inglês e tal, mas aqui no Brasil ela não teve tanto impacto.
Júlia: Sim, eu descobri essa reportagem inclusive por meio de um artigo da minha orientadora, ela não chegou assim. Na verdade, estou enganada, acompanhando as redes da Eliane Brum eu acompanhei a abertura de Sumaúma, aí eu tive acesso à reportagem, mas eu não me dei conta da dimensão do que era. Aí quando eu fui ler por uma outra perspectiva que eu entendi do que se tratava, a dimensão do contexto, porque ela não é uma reportagem sobre um acontecimento, ela tem todo um contexto, ela traz uma perspectiva de 4 anos de governo. Então eu fui ler e entender ao chegar no mestrado mesmo. Porque essas coisas, acho que tem um pouco de maturidade do nosso referencial, então quando eu tive um capital cultural para entender a profundidade da reportagem, vi a dimensão desse objeto, nela como um objeto de trabalho jornalístico, e fui entender também os desafios para a construção dessa reportagem.
Na reportagem “Ao amamentar as mães Munduruku podem envenenar seus filhos com mercúrio”, essa pauta não é sua. Você já passou um pouco sobre essa questão, e eu queria saber como foi a construção dessa reportagem, ela foi derivada de outras reportagens? Como, por exemplo, aconteceu com a “Não estamos conseguindo contar os corpos”? E a quem você acha que esse tipo de reportagem pode impactar?
Talita: Então, essa reportagem eu não acompanhei muito, eu não estava ainda como editora chefe e quem fez foi a Gabriela, eu não sei. O que eu sei da história dela é isso, que ela estava no território e que ela trouxe essa oportunidade de escrever sobre o que ela estava vendo no território. Sobre impacto, é difícil dizer, a gente sempre espera que o impacto seja muito amplo, mas é claro, a gente está falando de maternidade, de mulheres, a gente sempre é mais sensível, as mulheres são mais sensíveis a isso, mas não sei também, é difícil generalizar, né, não sei dizer.
Júlia: Não, tudo bem, eu até imaginei mesmo, porque foi uma volta muito longa e eu vi nas características das reportagens que você ainda não estava na redação como editora chefe. Mas então eu vou aproveitar e passar pra próxima, talvez você tenha um pouco mais de conhecimento que é a “Tá todo mundo contaminado por mercúrio, crianças, velhos e grávidas”. Eu queria saber se é um desdobramento dessa reportagem das mães Munduruku, ou se não é, se é um desdobramento das outras reportagens, ou se é uma pauta que surgiu por essas urgências, porque pelo que você estava relatando, vem muito né? Isso chega pra vocês. Eu achei legal e se você quiser comentar um pouco sobre isso porque, é claro que eu tô falando de um corpus espaçado, mas meu objeto de estudo é Sumaúma. Então, por exemplo, vocês têm esses colaboradores que estão construindo? Porque é o seguinte, deixa eu te explicar o contexto e eu volto na pergunta.
Eu sei que tem um certo desconforto com essa questão de territorialidade né, essa transição que a Eliane fez de sair de São Paulo e ir para o território amazônico, então tem toda uma questão de por que isso, tem-se um questionamento dentro da academia, dentro das universidades e até mesmo dentro do próprio cenário jornalístico que eu estou acompanhando. Eu particularmente não concordo com essa perspectiva salvacionista que colocam em Sumaúma, mas eu queria entender se vocês têm comunicadores indígenas. Ah, uma observação, eu entrevistei, ano passado, porque eu estava escrevendo um artigo específico, a Letícia Leite pra falar de rádio Sumaúma especificamente, e ela me falou dessa rede de comunicadores indígenas que auxiliam na construção do podcast. Eu queria entender como tá isso no cenário contemporâneo de Sumaúma pra eu conseguir trazer isso para a pesquisa e como é e como foi a construção dessa pauta de “tá todo mundo contaminado por mercúrio”, se teve uma participação coletiva ou se foi uma derivativa das outras reportagens.
Talita: Assim, antes, só pra falar dessas questões da construção da legitimidade, acho que é importante dizer que a gente, o grupo de fundadores e co-fundadores, ele existiu como um grupo, realmente. Tem a Eliane e o John que moram lá em Altamira há 15 anos, 14 agora, eu acho, por uma escolha de vida. Eles não foram com a intenção de salvar ninguém, nunca foi essa a ideia, mas a ideia de estar perto do lugar onde as coisas mais importantes naquele momento estavam acontecendo, que era a construção da usina de Belo Monte, todos os impactos que a usina de Belo Monte trouxe a Altamira… virou um grande centro de resistência por causa desses impactos. E a gente foi chamado para fazer parte, eu e a Carla principalmente porque a gente conhecia a Eliane do El país Brasil, a gente trabalhou lá, a Carla era diretora de redação e eu era editora, e a gente foi pra ajudar a construir a parte prática da redação mesmo. Assim, quando você começa um projeto, você começa com as pessoas com quem você já trabalhou, com as pessoas que você tem uma relação de confiança muito estreita. E a gente começou a fazer nossas reportagens, mas paralelamente à Sumaúma, a gente criou um projeto que chama Micélio, que eu diria que é o segundo braço de Sumaúma, que traz para Sumaúma jornalistas de diferentes perspectivas das diferentes Amazônias, porque isso também é uma discussão, não existe só uma Amazônia, então a visão de quem está em Belém é muito diferente de quem está em Altamira ou da visão de quem está, sei lá, em algum congresso, são situações completamente distintas dentro da Amazônia. Então a ideia era trazer esse intercâmbio de saberes para nossa redação e de fato isso foi revolucionário, tiveram muitos questionamentos sobre a linguagem que a gente usava, a forma como a gente enxergava a pauta, que vieram de dentro dos participantes do Micélio e a gente ensinava o que a gente aprendeu no nosso tempo de privilégio, de poder cursar uma universidade, como fazer uma entrevista, como construir um texto.
O Micélio é o futuro de Sumaúma, a ideia é que os jornalistas que passam pelo programa sejam pouco a pouco absorvidos pela redação. Então desse primeiro já tiveram três jornalistas que foram absorvidos por uma redação de Altamira, dois que a gente já conseguiu contratar e, claro, a gente tem uma questão de recurso também, tem um que está chegando agora em janeiro Ayumã Xipai que vai sair da aldeia, pra chegar na aldeia dele são três, quatro dias de viagem e ele vai pra Altamira para trabalhar com a gente. O Sol, que é da periferia de Altamira, e a Ju, que também é da periferia de Altamira, os 3 que vão trabalhar com a gente. E sim, a gente tem uma rede de jornalistas freelancers e a própria Catarina, que já ganhou dois Vladmir Herzog publicando em Sumaúma, é de Belém, filha de ribeirinho, uma jornalista incrível que trabalha com a gente, agora ela ganhou uma bolsa no Pulitzer que ela tá fazendo com Sumaúma, vai publicar agora em janeiro, a gente acompanhou todo o processo. A gente tem um jornalista em Belém, o Guilherme, então é isso, a gente foi crescendo com esse núcleo de pessoas que era um núcleo de confiança que não tem o objetivo de salvar ninguém, nosso objetivo é fazer jornalismo, que seja ético, que seja eficiente, que ajude a colocar luz a questões, que contribua para esse ecossistema de notícia que já existe, já tem a Amazônia Real, Amazônia Latitude e outros veículos locais. Então é só mais um, isso é importante assim, então tem muitas coisas que chegam dessa rede de freelancers, que chegam do próprio Micélio e os três jovens do Micélio fizeram uma bolsa com o InfoAmazônia, a InfoAmazônia nos procurou e falou: “olha, tem uma bolsa aqui, a gente tem uma verba pra fazer uma reportagem local, de dentro do território sobre mudança climática” e a gente falou: “vamos fazer com a Ju, com o Sol e com Ayumã e vamos perguntar para eles o que eles sugerem”.
E a gente publicou as três pautas que ficaram magníficas que vieram deles, tem coisa que vem da gente, tem coisa que vem do campo, e nesse caso em específico, dessa matéria, ela parte de uma parceria que a gente tem com a King’s College, é uma universidade de Londres, de direito, que nos procurou porque tinha interesse em fazer uma parceria para denunciar essas empresas que destroem a Amazônia, multinacionais que destroem a Amazônia, que eles podem ajudar com uma litigância nos seus países de origem, processar essas empresas no país de origem. E o Otávio, que assina essa matéria, ele é professor do departamento de direito da King’s College, e também é jornalista, já fez matéria para a Folha e tal, e eles tinham essa verba para fazer, que era uma verba deles, e propuseram a reportagem, e claro que a gente editou no padrão Sumaúma, mas a pauta surgiu dele especificamente e, de novo, no território Munduruku, que é um território super difícil de chegar. A gente queria fazer uma pauta lá esse ano, acompanhar grávidas que estão sendo afetadas pelo mercúrio, e a gente não pôde ir, porque não era seguro, as lideranças falaram: “ó, agora neste momento não dá”. Então é uma pauta que veio dele também, de conexões que ele tem no território Munduruku.
Júlia: Entendi, perfeito. Bom, o meu corpus são essas quatro reportagens, “Porque os garimpeiros comem as vaginas das mulheres”, “Não estamos conseguindo contar os corpos”, “Ao amamentar, mães Munduruku podem infectar seus filhos” e “Está todo mundo contaminado por mercúrio”. Eu queria saber o que você vê, tendo em vista o que você tem de conhecimento sobre construção de pauta das reportagens e também dos processos editoriais e narrativos, o que tem de comum entre essas duas reportagens.
Talita: Acho que são reportagens a partir do território, são campos feitos por equipes, essa não foi um campo específico nosso, mas de relatos de pessoas que estão no território, isso é importante, e acho que as três, de certa maneira tem um componente de um olhar para as mulheres e crianças, que são sempre violentadas em qualquer situação vulnerável, como as que a gente costuma cobrir, e acho que isso, talvez, são três pautas indígenas.
Júlia: De que forma, ao seu ver, você acredita que Sumaúma contribui para a configuração da memória sobre esses acontecimentos que estão sendo vivenciados no território amazônico?
Talita: Acho que esse é o papel de todo jornalista, o que a gente faz é sempre algo que fica para a posteridade, que marca um tempo e tal. Eu acho que a gente tem essa característica mais etnográfica com os textos, né, que é importante e que traz mais detalhes assim, do que o jornalismo tradicional, dos grandes jornais que tem mais espaço, que tem menos narrativa. Então acho que como documentação histórica tem esse valor aí, valor de trazer mesmo os detalhes. Acho que a gente também tem um diferencial que poucos veículos da imprensa têm que é trazer checagem, então tudo que a gente publica passa por checagem, passa por um olhar de uma pessoa especializada que vai questionar tudo, então a gente tem mais certeza que o que a gente está publicando não tem erro. Acho que é isso.
Júlia: Vocês acreditam, com o trabalho de vocês, com esse formato, que o jornalismo pode contribuir com a revelação dessas histórias e dessas vivências apagadas ou banalizadas no processo colonizatório e pela violência de gênero e raça? Se sim, vocês acreditam que o jornalismo pode contribuir para isso, como?
Talita: Acho que sim, a própria documentação da escuta das pessoas já é uma contribuição do jornalismo, né, acho que quando o jornalismo tem um certo impacto ali, como no caso da história das crianças, a gente tem a oportunidade de mobilizar políticas públicas importantes que ajudam a criar uma rede de apoio maior, então acho que sim. Todo jornalismo quando é bem feito, quando é um jornalismo de denúncia a determinados aspectos que são esquecidos, a gente tem um calor, a essas narrativas de memória que são muito importantes. O trabalho do Ayumã, que é esse que vai começar com a gente em janeiro no Micélio, dele e da irmã, os dois fizeram uma matéria pra contar história da avó deles que é uma indígena Xipaya, era né, ela já faleceu, era uma indígena Xipaya que passou por todo esse processo de ataque colonizador da Amazônia, desde quando os próprios indígenas ainda guerreavam, ela viveu esse momento que eles se separaram, mas aí logo depois quando eles chegam, tempo da borracha, chegam os fazendeiros, os grileiros que vão criar gado ali. Então, por meio de uma história de uma pessoa, a gente consegue contar todo um pedaço histórico da Amazônia que é muito bonito, que mostra conexão dos povos da floresta da própria floresta, porque é importante lutar pela demarcação de territórios indígenas, porque que é importante fazer essa defesa mesmo das questões indígenas… e eu acho que o nosso jornalismo tenta fazer um pouco isso, sabe? Mostrar para as pessoas porque é importante que essas lutas sejam levadas adiante, qual é o papel de você demarcar um território ou você entender essa tração da língua, da cultura, que muitos territórios estão fazendo, essa retomada também dos próprios territórios, porque que isso é importante para a Amazônia e para o próprio planeta, a gente sempre busca fazer essa conexão assim. Então eu diria que sim, todo jornalismo bem feito tem seu papel nessa cadeia de mudança e visibilização de práticas importantes.
Júlia: E como? Quais processos vocês acreditam? Porque eu acho interessante que vocês estão tão acostumados, pra você é tão natural esse tipo de jornalismo, porque vocês estão dentro do processo, você tá dentro de Sumaúma, então a única possibilidade de se fazer é dessa forma. Mas isso não é o jornalismo de teor convencional, isso não é o jornalismo hegemônico ou até mesmo de grandes e bons veículos de comunicação, não se tem esse resultado que se tem em Sumaúma. Então é por isso, por exemplo, que eu estudo, é o que a gente chama na minha pesquisa de fenômeno comunicacional, eu não tô nem chamando Sumaúma somente de jornalismo, porque eu acho que tem uma dimensão afetiva, ética, estética, política, etnográfica, histórica, de memória, é uma infinidade de dimensões mesmo, então vocês recorrem ao processo de animalização, pegam os seres inanimados e transformam em seres vivos e fazem alusão aos seres humanos, então são diversos e infinitos recursos éticos e de linguagens que pra vocês é normal, tá tranquilo porque é o que você tá acostumada a fazer, é o padrão Sumaúma como você mesma falou. Mas pra gente que vê de fora fica essa pergunta, como? Por exemplo, vocês têm um padrão, ou vocês trabalham dessa forma, vocês se reúnem para que isso aconteça, ou durante o processo de edição do texto o jornalista passa por um editor. Como é esse processo para alcançar esse resultado político?
Talita: Júlia, a gente é muito chato. A primeira coisa que eu falo pra um repórter que começa a trabalhar com a gente é que a gente é chato, mas um chato do bem, de fato. Mas acho que assim, primeira coisa, esse manifesto foi muito bem pensado, o projeto vem do John e da Eliane, ele tem muita correlação com o Banzeiro Òkótó que é o livro da Eliane. O nosso manifesto é essencial, ele diz muito claramente que o jornalismo que está sendo feito hoje e é feito nos grandes veículos, ele não atende mais às necessidades do mundo hoje né, são esses grandes centros urbanos que provocaram essa crise que estamos vivendo, essa crise climática, essa crise econômico-social, porque é uma crise de um modelo econômico, não é só uma crise, é uma crise universal, que passa muito por esse modelo econômico que a gente escolheu como sociedade. Então, está claro que o que a gente quer é mudar o lugar a partir do qual se faz jornalismo, a gente acredita que o jornalismo tem que ser feito a partir dos lugares que são os grandes produtores, promotores de vida. Então pra gente, pro nosso jornalismo, é que a voz das pessoas que vivem, que o modo de vida, que a forma de entender a floresta, o planeta, a natureza, desses povos que vivem em simbiose, essas são as que precisam ter voz, não é o nosso, não é a minha voz. Em São Paulo eu cubro a Amazônia há muito tempo, há décadas, mas não é a minha voz, é a voz deles, é a voz de quem entende… quando se lê Krenak, quando se lê Davi Kopenawa, você entende que existe um outro modo de entender o mundo. E é desse modo que a gente vê que precisa trazer à luz, que precisam entender, porque o modo que a gente vive hoje é o que está levando a gente para o colapso, sem querer te deixar triste em uma quarta-feira à tarde, mas é isso, a gente sabe o que vai acontecer com o mundo. Então é verdade, pra gente é um processo natural que é o que a gente acredita de fato, a gente não tá seguindo uma diretriz de um jornal como a gente fez há muito tempo né, a gente construiu… é o que a gente realmente acredita. Para as pessoas que estão aqui, não é porque elas estão ganhando muito dinheiro, status, elas não vão ser atendidas pelo presidente da república, como um repórter da Folha, não necessariamente. Então é um outro nível de envolvimento com o trabalho, acho que a nossa equipe entende o que a gente propõe, por isso que ela tá aqui com a gente, porque elas acreditam nessa forma de jornalismo. Mas sim, respondendo a sua pergunta, em termos práticos, também é verdade que a gente tem muitos processos, uma reportagem quando chega pra gente, a gente não publica, ela passa por muitos processos de edição, a gente já demorou um ano para publicar uma reportagem ela já foi e voltou para um repórter, tem um processo de edição muito intenso. Primeiro por um editor daquela área, depois uma segunda leitura minha e da Eliane e depois são revisados por uma editora de fotografia que vai pensar como essas fotos vão dialogar com os textos, ela traz um layout, depois para a checagem, que é uma pessoa responsável a verificar se tudo que tá escrito é verdade, depois para a revisão gramatical e de estilo, então a gente não chama grileiro de fazendeiro, por exemplo, isso para a gente é muito claro, é um posicionamento editorial, então a gente tem uma pessoa que tá assegurando que o estilo está sendo cumprido, depois uma editora de montagem, que vai olhar o layout, vai olhar o texto, vai ver se tá tudo bem, se está tudo conforme o nosso manual de estilo e depois vai ser traduzido ainda, e é publicado. Então é um processo muito demorado, tem muita edição, mesmo. Tem coisas que tem menos edição, a gente tenta interferir muito pouco na linguagem das pessoas, especialmente quando é texto de jornalistas do território, a gente tenta manter a linguagem, se você olha o que o Sol faz, por exemplo, é muito distinto, e é para onde a gente quer caminhar em Sumaúma. E a gente mexe muito pouco nas aspas das pessoas, a gente respeita o modo de falar delas, isso é fundamental.
Júlia: Uma coisa que me veio à mente, que eu queria entender, é se quando vocês pensam nas pautas, vocês pensam numa perspectiva de construção de futuro, porque você falou do manifesto de vocês, eu usei o manifesto e eu acho engraçadíssimo que toda vez que eu vou copiar do site de vocês, ele me fala que eu não posso copiar, e eu respondo, eu só tô pesquisando, eu juro, eu não tô reproduzindo, eu só tô pesquisando, mas é assim, eu queria saber se tem esse pensamento, na reunião de pauta, o que a gente vai tratar, sabe, o que tá acontecendo, quais são as urgências de agora, e como isso pode colaborar pro futuro, se essa demanda do futuro é uma demanda que existe pra vocês ou se ela só acaba acontecendo?
Talita: Eu acho que não é uma coisa pensada a cada pauta, sabe, “ah, isso aqui vai ter impacto no futuro” e tal. Claro que tudo que a gente faz, a gente espera que tenha um impacto, eu acho que é meio de fábrica, sabe, a ideia de que é isso, é o que tá no nosso manifesto, a gente acredita que o jornalismo tem que ter essa perspectiva distinta pra que tenha o poder de ajudar a fazer com que as pessoas compreendam o que tá acontecendo no mundo, a mostrar, quando a gente faz as denúncias nas reportagens, não são denúncias por denúncias, sempre tem uma interconexão com o que tá acontecendo no mundo, é importante porque, eu acho, a gente poderia tratar de vários temas, né, a gente escolhe intencionalmente os temas que a gente vai tratar de acordo com os recursos que a gente tem e os temas que a gente acredita que são mais urgentes, de fato. Então, sim, claro, eu sempre tenho a perspectiva de contribuir de alguma forma, né, tijolinho a tijolinho ali a modificar um pouco a realidade. Mas também é muito mais complexo do que isso e a gente tem consciência também disso. Como eu disse, a gente tá imerso em um sistema econômico que é muito problemático, né, e que não vai mudar tão cedo e precisa que esse sistema mude, que a gente mude a forma como a gente vive como sociedade. Então, tem um limite até onde a gente consegue ir, mas a gente tem que ter esperança de contribuir pra esse debate, de uma construção de uma outra sociedade, de outros caminhos, pra se conviver nesse mundo.
Júlia: Ao longo desse intervalo de uma atuação, por exemplo, 2022 e 2024, você percebe uma mudança ou alguma diferença nessas pautas urgentes ou nessas narrativas de sofrimento, tem sido mais fácil, por exemplo, escrever narrativas que geram, que são mais altivas, ou ainda temos essa mesma problemática e ela continua com a urgência que se tinha há dois anos, dois anos e meio atrás, quando vocês começaram o trabalho com o veículo?
Talita: Eu acho que existe, eu acho que tudo precisa desse contexto histórico mesmo, eu acho que a gente surgiu em meio a muitas outras mudanças. A gente teve uma mudança de governo significativa, a gente saiu de um governo, foi um governo que teve muito impacto de destruição, politicamente, ambientalmente e tal, e a gente entrou em um outro governo, né, que tem seus problemas, mas que não é o governo Bolsonaro, e acho que o mundo, de certa forma, também acordou um pouco pra emergência climática. Eu acho que a gente teve muitos fenômenos extremos nesses últimos dois anos, seca, enchente, a própria enchente do Rio Grande do Sul, mas fora do país também. Eu acho que o mundo tá mudando, né, e muito rapidamente, e eu acho que as pessoas estão começando a perceber isso… não diria que é um impacto do nosso jornalismo, acho que seria muita pretensão minha dizer qualquer coisa do tipo. Eu acho que o que a gente faz é isso, é o que a gente acredita, e acho que é fato que existe muito pouco espaço pra falar de Amazônia nos veículos tradicionais, eu sei, como eu disse, eu venho de um veículo tradicional, eu vi essa realidade, os veículos têm outras prioridades, outras agendas, e a Amazônia é muito cara, fazer reportagem na Amazônia é extremamente caro, você não faz nada, assim, a gente manda o repórter pra campo é 20 mil reais que a gente gasta. A gente gasta pouco, é caro, demora, né, tem questões de segurança que são importantes, então tem uma logística importante de trabalho aí também, então eu acho que tem isso. Agora uma coisa que eu achei curiosa, assim, eu diria, logo depois da matéria dos Yanomami, é que o ombudsman da Folha escreveu sobre a gente, né, logo o que aconteceu, depois busca esse texto, e aí ele dava uma bronca na Folha, falando que a Folha se desligou, se desconectou de assuntos como esses, da Amazônia, que precisou de um site ativista, que a gente é um site ativista ou algo do tipo, pra trazer essas questões e tal. Mas a Folha tem um correspondente, né, na Amazônia, a Folha fez, quando a Kátia Brasil lançou a Amazônia Real, ela lançou porque ela tinha saído da Folha num passaralho, numa demissão em massa, e eles fecharam naquela ocasião a correspondência na Amazônia, então eles ficaram muitos anos sem ter correspondente na Amazônia, o que já é um indicativo muito claro do que eles consideram a importância ou não, né, porque a gente está falando de 60% do território do país, mas, e aí depois eles abriram. Então assim, tem essa questão da própria grande imprensa ter uma resistência com determinados temas sociais, com questões indígenas, eu acho que existe uma visão muito estereotipada ainda no jornalismo sobre os indígenas e sobre as questões indígenas e sobre a produção de terra, uma falta de compreensão do que esse processo significa, então eu não diria, acho que a gente é muito pequeno ainda, a gente existe há dois anos, a gente não pode ter a pretensão de que a gente está mudando essa realidade, não é verdade, mas a gente está contribuindo, talvez, ali, para levar essa, mostrar que é possível fazer esse tipo de jornalismo, que é possível. A gente ganhou, em dois anos, 15 prêmios de jornalismo, a gente está em todos os principais prêmios e a gente está com alguma matéria, sabe, internacionais, nacionais… então, acho que também isso mostra para as pessoas: “ó, realmente, o que eles estão fazendo é importante”. Eu acho que, de certa forma, chama a atenção, né, talvez seja um caminho.
Júlia: Excelente. Uma última pergunta, essa outra maneira de fazer jornalismo, nós estamos pesquisando sobre ela, eu também trato disso na pesquisa, que são os novos arranjos produtivos para o jornalismo, porque o jornalismo, ele tem essa crise, a crise institucional e a crise intrínseca. Então, o que se pode fazer, quais são as ferramentas a que se pode recorrer enquanto jornalista para superar essa crise. Além disso, todo mundo que tem um telefone é produtor de conteúdo, tem a precarização da ausência do diploma, enfim… então, o jornalismo de teor testemunhal, que é esse jornalismo que eu estou analisando, Sumaúma tem esse teor, né… então é o teor do testemunho do jornalista, é de trazer o testemunho na mídia, o testemunho da própria mídia, e que as pessoas possam testemunhar esses acontecimentos por meio da mídia. Mas eu queria saber se você considera que vocês são um jornalismo ativista, um jornalismo, eu estou usando o termo jornalismo de posição, que é bem contemporâneo, mas eu queria entender se vocês mesmos se consideram um jornalismo ativista.
Talita: Eu acho que, assim, é uma questão muito polêmica, porque a palavra ativismo é uma palavra em disputa mesmo, assim, o que é ativismo, né? Se a gente for olhar para a imprensa como um todo, cada um tem o seu ativismo ali. Então, o jornalismo não é, assim, essa ideia de que existe um jornalismo que não tem lado é uma ideia muito idílica. Então, o que a gente faz é jornalismo, antes de tudo é jornalismo. A gente ouve todos os lados, a gente nunca publica nada sem ouvir o outro lado, a gente faz, tem uma apuração super rigorosa dos fatos, a gente não publica nada que não seja verdade, a gente atende a todos os critérios éticos do jornalismo, né, o que a gente faz é jornalismo. Agora, é claro, a gente tem um posicionamento, a gente é um lado, claro, nosso lado é o lado da floresta, isso não significa que se duas comunidades, se uma comunidade indígena faz algo errado, a gente não vai noticiar, a gente vai noticiar, nosso lado é o da floresta, é o lado do meio ambiente, é o lado da vida, da manutenção da vida do planeta. Então, claro, isso a gente é honesto, a gente deixa isso muito claro no nosso manifesto, a gente não esconde isso de ninguém, mas isso não significa que a gente não vá fazer jornalismo, que a gente vá escrever um panfleto, não é isso. A gente tá fazendo jornalismo, a gente tá ouvindo todo mundo, mesmo quando a gente faz uma denúncia de uma empresa, a gente procura a empresa pra falar, a gente dá espaço, a gente bota o que a empresa diz na matéria, então, assim, é isso, eu acho que essa palavra é ardilosa, nesse sentido, sabe, porque ela é uma palavra muito em disputa, né, então, e ela é muito mal vista.
Júlia: Eu acho que ela apequena também, é por isso que eu não tô usando o termo jornalismo ativista, eu estou usando o termo jornalismo de posição, vocês escolheram um lado e se posicionam em favor desse determinado lado, que tá claro, assim, dentro do manifesto de vocês. Não vou tomar seu tempo mais, já tá tudo certo, a entrevista foi maravilhosa.
Talita: Eu te agradeço, a gente tem atendido muitos estudantes assim, é curioso isso, é sempre muito legal, eu gosto de ver como vocês enxergam a gente, é curioso, muitas vezes aprendo coisas novas, nessas conversas assim.
Esta entrevista percorre e tem como foco principal as reportagens escritas por Talita Bedinelli para a plataforma Sumaúma de jornalismo, publicadas em 13 de setembro de 2022 e 20 de janeiro de 2023, intituladas ‘Por que os garimpeiros comem as vaginas das mulheres Yanomami’ e ‘Não estamos conseguindo contar os corpos’ disponíveis nos seguintes links: https://sumauma.com/por-que-os-garimpeiros-comem-as-vaginas-das-mulheres-yanomami/ e
https://sumauma.com/nao-estamos-conseguindo-contar-os-corpos/.
- [1] A entrevista foi realizada em 18 de dezembro de 2024 e, após sua realização, o corpus da pesquisa sofreu alteração, sendo selecionadas três reportagens: “Por que os garimpeiros comem as vaginas das mulheres yanomami?”, “Ao amamentar, mães Munduruku podem envenenar seus filhos com mercúrio” e “Não estamos conseguindo contar os corpos”.
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