Comunicação de Massa e poder político: O atual discurso da Rede Globo revelando seu empenho por uma nova imagem

Márcia Fantinatti

Neste ensaio, partindo da afirmação – nunca antes tão propalada – de que as telenovelas incorporaram temas da realidade, examinamos alguns aspectos que a empresa que as produz, a Rede Globo de Televisão, tem feito questão de ressaltar sobre os principais itens de sua programação. Juntamente com as definições que têm dado para as suas novelas – e, segundo pensamos, de modo articulado numa mesma fórmula – evidenciam-se pontos do atual discurso da emissora a respeito de sua relação com instituições, governos e movimentos sociais, nas diferentes conjunturas.

Nos últimos tempos, a Globo ampliou e deu visibilidade ao estudo e arquivo de memória sobre si. Lançou um Dicionário, para contar a história de suas produções; multiplicou os especiais dedicados a sua “memória”; tornou mais demarcados os ‘aniversários’ de cada item da programação, tudo aproveitado para dar destaque a seus méritos e enfatizar a prestação de serviços à cidadania: encorpou-se a auto-propaganda. Vemos esse conjunto, que inclui outras iniciativas, como parte de uma ampla estratégia de formação de uma nova imagem.

Dentre os elementos mais presentes no discurso recente, destacam-se os que convergem para os seguintes pontos de argumentação: 1) A Globo não recebeu favores de governos, nem foi criada com apoio dos militares; 2) A Globo não omitiu ou manipulou fatos, nem dispensou tratamento desigual a políticos e partidos, conforme as conveniências do momento; 3) As novelas da Globo não alienam, ao contrário, remetem à realidade. Ao defender sua imagem pública, a direção da Globo age em diferentes frentes, e parece ter consciência das principais críticas que lhe cabem, dos ataques que acumulou ao longo dos anos, ao consolidar-se como a principal rede de TV do país: no que se refere às formas de implantação (ligada aos militares, ao grupo Time-Life e seu capital estrangeiro) e ao conteúdo da programação (caracterizada pela omissão, pela auto-censura, pela distorção e manipulação dos fatos e da realidade, pelo excesso de fantasia e pelo conteúdo conformista que predominava na programação que levava ao ar).

Antes de entrarmos no exame detido desses pontos, levantamos hipóteses explicativas para a promoção de mudanças (reais e ou de imagem perante o público).

A partir dos anos 90, a televisão no mundo todo se transforma. Na América Latina, isso se reflete nas telenovelas, que passam a incorporar mais abertamente questões sociais; entretanto, destacam-se especificidades, características locais: dentre as motivações da Globo para promover mudanças (ou ao menos, propagandeá-lo), destaca-se a relação com os outros canais de televisão, que na virada dos anos 80/90 se modifica em função do acirramento da luta por audiência.

Em 1979, três em cada quatro moradias sintonizavam a Globo; vinte anos depois, em 1999, esse número cai, embora mantendo-se ainda elevado: metade dos lares brasileiros se mantinham ligados na emissora. O Jornal Nacional detinha 75% da audiência nacional em 1979 e passa a 53% em 1999 <sup>1</sup>. A partir de 1992, a audiência do chamado ‘horário nobre’ da Globo passa a decrescer velozmente. Para o noticiário, a audiência caiu vertiginosamente e em 1997, representava apenas pouco mais que a metade das médias obtidas no final da década anterior, em 1989.

Evolução das médias de audiência do Jornal Nacional

Período 1989 – 1997 (*) dados do Ibope.
1989

1992

1995

1997
59 pontos

51 pontos

42 pontos

35 pontos

A queda brusca de audiência do telejornal pode ser interpretada como ‘deslegitimação do emitente’ (Eco & Fabri 1978); superado pela preferência do público por informações dadas por emissoras concorrentes, seja pela qualidade das mesmas ou pelo simples descrédito despertado.

Em maio de 1990, o SBT – fora da disputa de audiência das novelas, travada então entre Globo e Rede Manchete – decidiu experimentar a concorrência direta entre seu telejornal e o da Rede Globo, levando ao ar o TJ Brasil, apresentado pelo, à época prestigiado jornalista Boris Casoy, no mesmo horário do JN. Apostando em credibilidade, Sílvio Santos, afirmava:

“Estou sentindo, através de conversas com formadores de opinião, que o nosso TJ Brasil tem mais credibilidade que o Jornal Nacional e, como acredito que o público das classes A e B chega em casa depois das 7 e meia, acho que o certo é passar o nosso telejornal para as 8 horas” (Sílvio Santos, cf. ‘Tiroteio no vídeo’ in: Veja, 09/05/1990).

O JN continuou liderando a audiência, mas, de tempos em tempos, tendo novas baixas. Em 2000 e em 2001, pelo sucesso, ainda que descontínuo e momentâneo, de programas do SBT, respectivamente: ‘Ratinho‘ e ‘A Casa dos Artistas‘.

No que toca diretamente às novelas, no período final da década de 80 até meados da de 90, também não foram mantidos os índices recordes da Globo, embora tenham se mantido na liderança. ‘Roque Santeiro‘ (1985), um dos marcos de audiência na década de 80 na Globo, obteve já na semana de estréia 67% da audiência nacional; no primeiro mês de exibição, alcançou os 72%, saltando no segundo para 75%. Mantendo média geral de 74%, rondou, em alguns momentos, o patamar recorde de 80% da audiência, somando 60 milhões de espectadores, segundo o Ibope2. Fato incômodo para a Globo virá em 1990, quando a novela ‘Pantanal‘, escrita por Benedito Ruy Barbosa para a Manchete, atingiu audiência comparável à de novelas globais. No ano seguinte, foi a vez do SBT incomodar. A Globo, que já obtivera audiência média na faixa de 70% nos anos 70, de 60% na década de 80, iniciara mal o ano de 1991 com os 50% de ‘Meu Bem, Meu Mal‘ e consegue apenas 41% com ‘O Dono do Mundo‘, de Gilberto Braga, que estreou na mesma data em que o SBT levava ao ar ‘Carrossel‘. Indo ao ar às 20h, a novela mexicana ‘Carrossel‘, da Televisa, exibida no Brasil pelo SBT em 1991, mexeu tanto com a audiência do JN, quanto da novela das oito na Globo. Três semanas antes da estréia de ‘Carrossel‘, o SBT tinha 6% da audiência no horário, contra 54% do JN. Com ‘Carrossel‘, o público do SBT atingiu 21 pontos no Ibope, enquanto a Globo caía para 41. Embora a novela exibida pelo SBT tenha ficado muito abaixo dos índices da Globo, é certo que a produção mexicana fez a líder perder pontos3.

Somadas as preocupações da emissora de recuperar sua posição de larga liderança na preferência do público – e considerando a instalação e expansão de novas tecnologias, tais como canais por assinatura (UHF ou a cabo), que pulverizaram as audiências em diversas partes do mundo -, também no campo da conjuntura política se encontram fortíssimas motivações para os processos de mudanças, que se referem sobretudo à imagem da Globo, desencadeados a partir dos anos 90. É preciso referirmo-nos à atuação dessa Rede nas eleições presidenciais de 1989, e seu particular apoio ao candidato Fernando Collor de Mello, afastado do cargo menos de dois anos depois de eleito, por uma Comissão Parlamentar de Inquérito, que apurou denúncias de corrupção envolvendo seu governo. A Globo havia atuado velada, porém ativamente em favor daquela candidatura, vinculando excessivamente sua imagem à do político. Grandes atos públicos realizaram-se pelo país, em 1992, pedindo o impeachment do presidente, num amplo movimento popular. Mesmo sem afetá-la no plano prático (não foi envolvida no processo parlamentar que afastou o presidente), pode-se afirmar que os danos à imagem do político “respingaram” na da maior emissora de TV do país.

Reportagem de 1993 da TV inglesa, Channel 4, compara Roberto Marinho (dono das Organizações Globo) ao fictício magnata das comunicações criado por Orson Welles em “Citzen Kane”. O título antecipa as conclusões: “Muito além do cidadão Kane”. O poder das organizações Globo teria superado a ficção, em que um magnata controlava e manipulava a política, de modo direto e quase sem limites. Abordando as manipulações da emissora brasileira, aponta as formas utilizadas pela Globo, nas eleições de 1990, para promover Fernando Collor, e o esforço para depreciar o candidato de esquerda – chegando ao ponto de antecipar a derrota deste, no telejornal, às vésperas do pleito4.

A Globo, então, passa a empreender uma ‘batalha’ para afirmar-se como politicamente autônoma e confiável na tarefa de informar sobre a realidade do país; visando à recuperação da imagem de credibilidade junto ao público e patrocinadores. Ela teria tido que reorganizar sua forma de se apresentar, para manter-se protegida de desmoralização e descrédito. Daí o apelo a ‘mais realidade’ que se reflete nas telenovelas nos anos 90, como tendência internacional sobre o gênero, tal como em outros países da América Latina, mas também como parte de uma nova ordem geral na Globo, que atinge toda a programação. Foram diversas as modificações, da substituição de apresentadores de telejornais por jornalistas, demissões de altos funcionários da editoria jornalística. A dupla que durante décadas apresentou o Jornal Nacional – Cid Moreira e Sérgio Chapelin – cedeu lugar a jornalistas. Até o visual mudou de modo a conferir mais credibilidade. O noticiário – que teve papel decisivo e indisfarçável na ajuda dada pela Globo para eleger Collor – passou a ser retransmitido de ambiente de redação de jornal como cenário (cuja função parece ser a de reconstituir a atmosfera de produção de reportagens jornalísticas, com elementos referenciais que lhe são correspondentes no imaginário de nossa época, em que operadores de microcomputador, funcionários falam ao telefone etc. são vistos simultaneamente à apresentação das notícias).

As modificações atingiram também o seu item de maior audiência, as novelas. E respondem à necessidade de adaptação aos novos tempos (não ditatoriais) e, simultaneamente, de melhoria da imagem (após o episódio Collor).

A despeito do aparente adesismo de setores da grande imprensa (com a chegada do PT à Presidência da República), especificamente sobre a Globo, é necessário enfatizar que esta já vinha adotando medidas no sentido de mudar sua imagem, há pelo menos 10 anos. A fala de um dos proprietários da Globo, em 1994, é esclarecedora dos novos rumos que ela deveria adotar:

“Precisamos garantir que nosso jornalismo, nossa programação, nossas ações comerciais e administrativas jamais sejam influenciadas por interesses pessoais, amizade ou motivações não transparentes.”5

Independentemente de examinar o cumprimento da premissa, importa destacar esse processo de modificação da imagem – que é parte da guerra permanente por audiência e por patrocínios.

A Globo não recebeu favores de governos, nem foi criada com apoio dos militares?

A Globo se projeta como uma estrutura de poder que não se pode subestimar; já em 1985, era a quarta maior rede de televisão comercial do mundo (superada apenas pelas norte-americanas CBS, ABC e NBC), e a maior em volume de produção (80%), cobria 98% do território brasileiro através de suas estações e afiliadas, detendo quase metade da verba publicitária, e também se consolidara como exportadora (Mattos, 1990:9). Dados recentes confirmam as fabulosas dimensões:

“Hoje, a Globo cobre praticamente todo o território nacional, sendo vista por 99,84% dos 5.043 municípios brasileiros. Os números da Rede Globo são prova definitiva de seu crescimento: 113 emissoras entre Geradoras e Afiliadas, 74% de share no horário nobre, 56% no matutino, 59% no vespertino e 69% de share de audiência no horário noturno. (…) leva hoje a cultura brasileira a espectadores de cerca de 130 países em todos os continentes. (…)” (site da Rede Globo – dezembro/2001).

Ela se desenvolveu e se consolidou durante o período de ditadura militar no país (1964-1985), sendo íntima a relação entre sua história e a do período autoritário no Brasil. E emplacou por reunir três fatores: os fortes investimentos (graças ao acordo com o grupo norte-americano Time-Life)6; poder contar com os favores do governo a quem servia (sob comando dos militares) e os métodos de administração modernos e racionais (a Time-Life não apenas financiou a TV Globo, enviou-lhe seu “know-how”). Foi graças à implantação do sistema de telecomunicações da Embratel (Empresa Brasileira de Telecomunicações) que pôde se ampliar, atingindo rapidamente amplas parcelas do território nacional (Ramos & Borelli, 1991:81). Os militares modificaram a política de comunicações, criando o Ministério das Comunicações em 1967 e implantando, pela Embratel (filiada à Intelsat – Consórcio Internacional de comunicações por Satélite), o Plano Nacional de Telecomunicações que possibilita as redes nacionais de TV, com estações repetidoras (Mattelart, 1987), iniciativas das quais a Globo se beneficiou rápida e diretamente.

As emissoras de televisão em nosso país – e de modo particular, a Rede Globo – tiveram papel ativo, auxiliando a disseminar ideologias em sintonia com os propósitos dos governos militares. Tanto as atitudes e os depoimentos de diretores da Globo quanto as declarações dos governantes confirmam a relação ‘amigável’ entre a Globo e os militares no poder. Entre os fatores facilitadores do crescimento da Globo, Mattos (1984) destaca a rapidez com que se desenvolveu a economia brasileira e sua indústria publicitária, além do relacionamento amigável com os governos militares. Kehl (1986a) descreve a Globo como: “Não diretamente controlada, mas viabilizada pelo Estado (…)”.

A seguir, trecho de depoimento de um dos diretores executivos da Rede Globo, à época do regime militar:

“Contem, o presidente Geisel, as Forças Armadas, os legisladores, com o apoio de todos os meios de comunicação social deste país, que acima de seus debates e controvérsias colocam sempre seu compromisso de orientar e conduzir a opinião pública na sua luta permanente contra a radicalização, em busca dos caminhos da Justiça, da Ordem e da Democracia.”Depoimento de Mauro Salles, citado em Kehl, (1986a:207).

Sobre a satisfação dos governos com os meios de comunicação, destaca-se a antológica frase de Médici, em 1973, dando conta de sua tranqüilidade em relação aos noticiários (subentenda-se: principalmente o JN), que tratavam de aliviar o quadro real do país (Mattos, 1990:17):

“Sinto-me feliz, todas as noites, quando ligo a televisão para assistir ao jornal. Enquanto as notícias dão conta de greves, agitações, atentados e conflitos em várias partes do mundo, o Brasil marcha em paz, rumo ao desenvolvimento. É como se tomasse um tranqüilizante após um dia de trabalho.”

Dessa espécie de simbiose com os governos militares, a Globo, atualmente, defende-se. Na fase atual, tenta se desvencilhar da imagem de empresa que teria surgido e se desenvolvido à sombra dos ‘anos de chumbo’, com auxílio de favores dos governos militares.

Em 1990 – portanto, já no período pós regime militar – numa das raras entrevistas que concedeu, Roberto Marinho fez questão de frisar independência em relação aos militares.

Não recebi concessão nenhuma desses governos (militares), comprei as televisões de empresários malsucedidos. Só recebi duas concessões, uma do Juscelino, que o Globo atacava, e a outra, do outro adversário, o Jango Goulart, em 62, a TV de Brasília.” (Roberto Marinho, em ‘O Estado de S. Paulo’, 05/05/1990, pp. 4-5.) (Os grifos são nossos)

No site da emissora também destaca-se o fato de ter obtido a concessão de governos civis, anteriores ao período militar. E ainda que, em vários casos, adquirira canais junto a grupos privados já portadores da concessão (sem contato direto com o respectivo governo):

“Eram 11h daquele 26 de abril, em 1965, quando a Rede Globo de Televisão – então apenas o Canal 4 do Rio de Janeiro – entrava no ar e dava início a uma trajetória vitoriosa. (…) Destacando-se em um mercado televisivo essencialmente amador, flagrante na data de sua inauguração, a Rede Globo, cuja concessão no Rio fora outorgada no governo do presidente Juscelino Kubitschek, foi ampliando sua cobertura e, em pouco tempo, entrava no ar em São Paulo, através do Canal 5 (antiga TV Paulista, adquirida do grupo Victor Costa); em Belo Horizonte (pela emissora adquirida do grupo J. B. Amaral em 1968), em Brasília, em 1971 (concessão feita pelo presidente João Goulart em 1962), e em Recife (através de emissora adquirida do grupo Victor Costa), no ano seguinte.” – site da Rede Globo – link história da empresa, dezembro/2001. (Os grifos são nossos)

Mas, por mais que a publicidade da Globo busque desintegrar, no plano simbólico (ou ideológico) o passado recente, caberia indagar se ela consegue efetivamente fazê-lo no plano prático. Para além de uma aliança tática – em que procuraria conviver com um determinado tipo de governo, sem no entanto ser conivente para com ele – a Globo compartilhou projetos nacionais decisivos com os governos militares, tais como o da promoção da integração nacional, visando desenvolver e impulsionar o consumo de massa, em que acabam tendo papel central, as telenovelas.

Touraine (1969) fala da integração social como forma de dominação, ao abordar a manipulação cultural e os aparelhos administrativos; e do acesso e controle da informação como fatores de poder político. A sociedade pós-moderna seduz, manipula e integra. Segundo Adorno (1977), a indústria cultural é sinônimo da integração dos consumidores.

Promover a integração nacional – objetivo compartilhado pelas Organizações Globo com os governos militares, e que rendeu a ela a ampliação de seus interesses empresariais – esse é fundamentalmente o intuito da emissora desde sua criação, e que se coadunou perfeitamente com os propósitos da fase de desenvolvimento da produção/consumo de massa em nosso país.

Barros (1974), em meados da década de 70, já demonstrara que no Brasil, o Estado intervinha, buscando obter através da televisão uma “.. conversão de grande parte de um público heterogêneo, no sentido de homogeneizá-lo.” Ao descrever de que forma o golpe de 64 teria afetado os meios de comunicação de massa, no Brasil, Mattos (1990:13) afirma que:

“O crescimento econômico do país foi centrado na rápida industrialização, baseada em tecnologia importada e capital externo, enquanto os veículos de comunicação de massa, principalmente a televisão, passaram a exercer o papel de difusores da produção de bens duráveis e não-duráveis.”

Sobre a importância de criar disposição ao consumo, é reveladora a afirmação do então diretor executivo da Globo, Walter Clark, em meados na década de 70:

“Esta é a importância maior da comunicação em um sistema produtivo: transformar a população em mercado ativo de consumo, gerando a disposição ao consumo, relacionando cada bem, produto ou serviço ao estrato social a que está destinado, atingindo simultaneamente a todos os estratos e imprimindo maior agilidade ao mecanismo produtivo.”7

No esforço de indução ao consumo que, de resto, constitui a base e a razão de ser da indústria cultural, é funcional a criação de uma “identidade nacional”.

Kehl (1986a) define a TV Globo como um eficiente veículo de integração nacional – de uma população unificada não enquanto povo, mas enquanto público; uma imensa rede, transmitindo uma única programação para milhões de telespectadores. A integração se daria ao nível do imaginário – já que apenas parte da população teria realmente condições de participar da distribuição de bens, de integrar-se de fato. Vale destacar os parâmetros do “consumo simbólico” e do “consumo de imagens” no Brasil: há elevado número de domicílios com aparelho de TV, mas sem geladeira. Segundo dados recentes, em cerca de 2 milhões de lares brasileiros o único eletrodoméstico é o aparelho de TV. Ao lado disso, aponta-se que, atualmente, apenas 15% do público são responsáveis pela compra de 65% de tudo o que é veiculado pela publicidade televisiva8. Segundo o IBGE (Instituto de Pesquisa de dados sobre a população brasileira), só a presença do fogão supera o percentual de aparelhos de televisão:

Existência de bens duráveis em domicílios brasileiros em %
(1997-2001)

1997

1998

1999

2001
Nº de dom. da amostragem
40.644.623

41.839.703

43.859.738

46.570.967
Fogão
97,01

97,4

97,4

97,6
Filtro d’água
57,22

56,4

55,6

52,7
Geladeira
80,27

81,9

82,8

85,1
Freezer
18,77

19,7

19,6

18,8
Máq. Lavar roupa
31,72

32,3

32,8

33,7
Rádio
90,33

90,4

89,9

88,0
Televisão
86,21

87,5

87,7

89,0
Fonte: IBGE – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios.

A Globo não omitiu ou manipulou fatos, nem dispensou tratamento desigual a políticos e partidos?

Já na vigência de um governo civil, o início da década de 90 é ainda marcado por discursos e disposições práticas que revelam que o envolvimento da direção da emissora com representantes do poder, ao menos naquele momento, era tido como natural. Antes de existirem outras emissoras com condições e capacidades concretas de avançar na luta pela audiência, a Rede Globo não demonstrava preocupação em defender-se de críticas à sua proximidade com governantes. Ao contrário, as ligações com os poderosos, ou o uso da TV em favor de políticos, eram admitidos pelos dirigentes da emissora, com tranqüilidade e sem disfarces. Ou seja, se no período pós ditadura, em clima de redemocratização do país, houve a necessidade de demonstrar distância em relação aos militares, em entrevista que Roberto Marinho concedeu pouco depois da eleição de Collor de Mello, o dono das Organizações Globo não manifestava ainda esforços em demonstrar independência dos governos civis que se sucederam. Ao contrário, revelava até mesmo certa arrogância, ostentando o seu poder de influência nos rumos do país.

Ao responder sobre se usava seu poder e o que achava melhor para o país, respondeu enfatizando sua ‘colaboração’ para o engrandecimento do país:

“…eu só usei o poder nesse terreno opinativo no ‘Globo’; em declarações e discursos eu uso essa colaboração – que eu considero modesta para o país. Você vê que a Rede Globo não é política, embora os jornais da Rede Globo tenham uma repercussão muito grande e uma forma de opinar. Não opinar mostrando o melhor, opinar em favor de determinados indivíduos, mas na melhoria e no aprimoramento e engrandecimento do país.” (Roberto Marinho, entrevista publicada in O Estado de S. Paulo, Caderno 2, 05/maio/1990, p. 4-5.)

Indagado sobre se a Globo teria força de eleger um presidente, respondeu que ela poderia ‘contribuir’ para isso:

“Não. Ela pode, dentro de um conjunto de circunstâncias, contribuir, poderosamente ou não para eleger um presidente, um senador. Amanhã a TV Globo pode apoiar uma pessoa que não seja eleita.” (idem, ibidem.)

Nesse momento, o dono da Globo julgava natural que um poderoso meio de comunicação interceda num processo eleitoral, apoiando um candidato, ‘contribuindo’ para que seja eleito; não se preocupa em manter independência e/ou eqüidistância em relação aos candidatos. Também não faz questão de demonstrar que dispensa tratamento imparcial aos postulantes ao poder, ao contrário: expõe abertamente seus diletos e desafetos. Sobre Brizola, afirmou:

“Ele (Brizola) dizia que, quando ele assumisse a Presidência da República, a primeira coisa que faria era fechar a Rede Globo. (…) … ele ficou em terceiro lugar, não conseguiu nada. Agora vai tentar ser governador, o que será uma pena. A cidade precisa de outra pessoa, capaz de restaurar o Rio de Janeiro.” (idem, ibidem.)

E expôs sem reservas a sua aflição, ao ver a possibilidade de que, com auxílio dos votos transferidos por Brizola no segundo turno da eleição disputada com Collor em 1989, Lula vencesse:

“As coisas começaram a empretecer quando o Brizola trouxe seu contingente de votos para o Lula.” (idem, ibidem.)

Ainda nessa fase, Roberto Marinho exibia sua galeria de contatos com os mandatários, nos diferentes momentos da historia recente. Parecia não se incomodar – mais que isso, achar bastante justificável e ‘natural’, que um poderoso meio de comunicação mantivesse íntima relação com os governantes. Revelava não apenas sua responsabilidade e autoridade na escolha de ministros, confirmando-se, praticamente, como um ‘Estado dentro do Estado’, como os privilégios dados à sua emissora, como o de dar notícias em primeira mão:

“Fui almoçar com o Sarney e ele disse: ‘Doutor Roberto, o senhor me ajuda a escolher um ministro da fazenda?’ (…)… Conversei muito com ele (Maílson da Nóbrega), achei que ele entendia daquelas coisas todas e, quando ele saiu, telefonei para o Sarney dizendo que tinha gostado do Maílson, que achava uma boa solução. Então ele me disse: ‘Por favor, dê a notícia na TV Globo’. Telefonei e mandei dar a notícia”. (Grifos nossos). Observe-se ainda que, quando relata o diálogo entre eles, o faz em um modo que evidencia até mesmo nas ‘entrelinhas’ a sua importância e autoridade: ele se referia a Sarney informalmente, usando o tratamento ‘você’, enquanto o então presidente da República, por sua vez, era quem o reverenciava: tratava-o por ‘Doutor’ e ‘Senhor’. Do mesmo modo, em outro trecho da mesma entrevista, se referirá a outro presidente, Collor de Mello, informal e paternalmente, chamando-o ‘esse menino’. (idem, ibidem)

Parece-nos que nesse momento, 1990, a direção da Globo ainda não manifestava as mesmas preocupações que surgiriam na fase seguinte, após a queda de Collor. Ultimamente, tem tentado se eximir da denúncia de ter omitido ou manipulado fatos, bem como de ter dispensado tratamento desigual a políticos e partidos, conforme as conveniências do momento.

Como as principais críticas que recebeu – do final da ditadura em diante – dirigem-se a ter sido indiferente aos atos públicos em favor de eleições diretas, em 1984, e aos protestos pela saída de Collor da presidência, em 1992, ela, no presente, tem se referido a tais eventos. O tom de auto-crítica aparece de modo mais claro na Revista Época, uma publicação da Editora Globo:

“Com uma audiência potencial de 157 milhões de brasileiros, atingindo 98,75% dos 5.500 municípios, ou seja, com esse poder, a Globo poderia criar e derrubar presidentes, privilegiar ou ignorar coberturas jornalísticas. Foi justamente contra esse poder que a população saiu às ruas, em 1984, para protestar. ‘O povo não é bobo, abaixo a Rede Globo’ foi o slogan mais repetido na campanha pelas eleições diretas, que comoveu o país naquele ano, mas não empolgou a rede. A Globo demorou para cobrir os comícios e foi duramente criticada pela omissão.” (Revista Época, Caderno Especial, Agosto/2003, p. 22-23)

Para livrar-se da acusação de omissão, sua estratégia baseia-se num esquema relativamente simples: escorar-se nos jargões dos tempos de ditadura, apresentando-se como refém da censura, portanto, alvo do autoritarismo. A um só tempo, busca justificativa para seus enfoques e edições, e atribui a si própria um papel de vítima do sistema. Como exemplo exacerbado dessa manobra, com a morte de Roberto Marinho, a título de render-lhe homenagens póstumas, produziu-se uma edição especial do JN, (em 7/08/2003, um dia após a morte do empresário), em que vem a público frase atribuída a ele, em suposta defesa dos comunistas que trabalhavam para o seu jornal durante a ditadura militar. A mesma frase encontra-se na Revista Época de 11/08/2003:

“Ministro, o senhor faz uma coisa, vocês cuidam dos seus comunistas, que eu cuido dos nossos lá do Globo.” (Idem, ibidem, p. 12)

Em 1965, o Ministro da Justiça do governo Castello Branco, Juracy Magalhães, teria chamado donos de jornais para uma reunião em que fixava como queria que a imprensa se comportasse. Na ocasião, teria entregue ao dono de ‘O Globo’ uma lista com 64 nomes de profissionais que deveriam ser demitidos. Com a frase acima, Roberto Marinho teria se recusado a fazê-lo9.

Para referir-se aos tempos de ‘distensão’ do regime militar e início da chamada ‘Nova República’, para os quais o pretexto da censura teria pouca eficácia, a emissora apresenta cenas sacadas de seus arquivos de imagens. Em agosto de 2003, ao comemorar os 34 anos do JN, a Rede Globo lançou inserções de trechos antigos desse noticiário nos intervalos comerciais. As antigas imagens do JN escolhidas traziam os locutores narrando o movimento pelas Diretas e os protestos pelo impeachement de Collor. Viam-se Cid Moreira e Sérgio Chapelin noticiando passeatas e comícios pelas diretas e pelo impechemant, com a data respectiva impressa na tela. Nada mais era dito ou escrito além da frase comemorativa ao 34o aniversário do telejornal. O objetivo parece claro: confrontar, tacitamente, a afirmação corrente segundo a qual ela se omitira em tais momentos.

Tais manifestações públicas foram, de fato, anunciados pelo JN. Porém, passados quase 20 anos da campanha pelas diretas e cerca de 11 anos da queda de Collor, relembremos que, à época, o telejornal de maior audiência só deu enfoque quando, em cada um dos casos, já não era possível negá-los, quando adquiriam proporções numéricas (e/ou abrangência política) que já não permitiam ser escondidos. Sempre a ‘primeira’ em tudo, a Globo era a última a noticiar reivindicações e/ou escândalos que afetassem os governos. Ambos acontecimentos tinham em comum o fato de desfavorecer os setores políticos mais conservadores do espectro político nacional, em favor dos movimentos populares, das organizações sindicais e partidárias de esquerda.

De resto, algumas formas de edição se tornaram tão conhecidas quanto previsíveis, rendendo à Globo algum descrédito: os números dos participantes de assembléias de movimentos grevistas e de atos públicos era sempre subestimado; imagens do local não eram feitas, ou o eram em momento em que já não houvesse mais tantos participantes.

Dentre os episódios pelos quais a Globo foi acusada de um comportamento flagrantemente parcial no tratamento da notícia, destaca-se o do segundo turno das eleições presidenciais de 89, como talvez o mais crítico. Momento delicado da história do jornalismo da emissora, a edição do debate entre Collor e Lula, pelo JN, às vésperas do primeiro turno das eleições, ainda não foi definitivamente enterrada. Vários anos depois, encontram-se tentativas de justificar o ocorrido. Exemplo disso pode ser visto através do programa que levou ao ar para comemorar os 50 anos da televisão no Brasil, em 2000, em que ‘revisita’ o ocorrido e procura insistir num ponto: Lula foi mal no debate. Passa ‘em branco’ o fato da emissora haver emitido julgamento que caberia ao eleitor; e não se contesta o fato de que performance televisiva não pode ser confundida com programa de governo. Sair-se bem nos 60 minutos de debate adquire importância decisiva, como se o candidato ao governo se candidatasse ao papel de ator, num programa de calouros, ao vivo. Como se a eficácia de sua plataforma política fosse redutível à sua aparição na tela da TV. A Globo definiu os parâmetros a serem usados para desqualificar ou eleger um chefe de Estado: a boa aparição no vídeo, a imagem, a forma e impostação ao falar (a de Collor, supostamente mais firme), substituindo todos os complexos elementos envolvidos numa escolha do mandatário da Nação.

E a assimilação passiva de tais critérios revela em que medida raciocina-se pela ótica imposta pela “era da TV”: sem questionamentos ao fato de que realidade e imagem televisiva se confundam.

Entretanto, o episódio de 1989 (edição do debate dos candidatos) é exemplo a não ser repetido pela emissora. Nos processos eleitorais seguintes (1994 e 1998) – na grande imprensa, a Globo incluída – mais que a manifestação da preferência por um candidato, optou-se por alardear as conquistas do plano Real (freio à inflação e estabilidade econômica), ao qual o nome de Fernando Henrique estava associado (em 94, como Ministro de Itamar Franco, em 98, como Presidente). Merece referência o episódio em que o ministro Rubens Ricupero explica – sem dar-se conta de que os microfones abertos, suas falas decodificáveis pelas antenas parabólicas – que às informações positivas sobre a política econômica do governo era dada visibilidade, enquanto as negativas eram omitidas é ilustrativo da visão generalizada sobre a facilidade de manipular informações, construir imagens públicas. Com cínico orgulho, escancara o domínio sobre o modelo “esconde-revela”. Em 2002, novo formato de debate na Globo: um candidato não dirige questões diretamente ao outro, participa sempre sob a mediação do apresentador do programa (o jornalista Willian Bonner). Ao final do processo fez-se o ‘elogio das eleições’, da ‘festa’ da democracia, da ‘modernidade’ representada pela urna eletrônica (observada por analistas de mais de 40 países), o alto nível dos debates (entenda-se: marcado por menor agressividade e ataques mútuos), enfim, a espetacularização do acontecimento político, a sua cada vez maior apropriação e modulação pela TV, em ritmo de despolitização. A decisão sobre a performance de cada candidato (que desta vez, não foi posta em confronto; cada candidatos (Antony Garotinho, Ciro Gomes, José Serra e Luís Inácio da Silva) foi entrevistado, individualmente, ao longo de julho/2002, no Jornal Nacional. Depois disso, a Rede Globo encomendou pesquisa ao Ibope – transferindo, assim, responsabilidades, sobre qual teria tido melhor desempenho, segundo os telespectadores). Eleito o candidato de esquerda, a eleição de um operário foi mostrada como mérito da democracia brasileira, funcionando como o seu ‘certificado de qualidade’ (conforme resumiu o editorial da Revista ‘Veja’: “Sua vitória (de Lula) representa o triunfo de uma idéia, de uma férrea vontade pessoal, mas é também o certificado de qualidade da democracia brasileira.”(‘Veja‘, 30/10/2002, p. 35). Enfim, o auto-elogio portando prestígio, que coroa, por extensão, o papel da imprensa no processo eleitoral.

Destaca-se, para além disso, uma tendência geral dos meios de comunicação em todo o mundo: processa-se uma fusão cada vez maior entre realidade e ficção, novela e jornalismo, cena política e televisiva.

Bucci (1996) aponta que, ao dramatizar tudo, o jornalismo teria perdido a capacidade de explicar temas complexos. Do mesmo modo, podemos afirmar que a superficialidade e a fragmentação dos fatos também estão presentes nas telenovelas e minisséries que se propõem a retratar acontecimentos históricos ou a abordar movimentos sociais e outros temas da realidade. O resultado parece ser uma teledramaturgia pretensamente ‘realista’, de um lado, e um jornalismo ‘romaceado’, de outro. Nas telenovelas, um indício significativo de que não haveria mais nenhum esforço em manter separados espetáculo televisivo e realidade: a Globo já não inclui nos créditos de apresentação de suas novelas a clássica advertência “Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança entre fatos e personagens aqui retratados terá sido mera coincidência”. Também se tornou um tanto inadequado intercalar o penúltimo e último blocos de um capítulo com a advertência ‘a seguir, cenas dos próximos capítulos’, porque a vida real não se passa em capítulos e se a novela quer parecer-se ao máximo com a vida, o seu formato não deve ser constantemente relembrado ao seu público.

Mas diante dessa conveniente mixórdia de real e ficcional – mal encobrem-se as incompatibilidades entre informação e interesses políticos e econômicos.

As novelas da Globo não ‘alienam’, ao contrário, remetem à realidade?

A Globo tem insistido em apresentar suas novelas essencialmente conformadas pelo ‘realismo’. Contrapõe-se à crítica, segundo a qual seriam fantasiosas, fora da realidade.

Num especial sobre telenovelas, em 2001, ano em que a TV no Brasil completava 50 anos – e a Rede Globo, 35 anos – o autor Benedito Ruy Barbosa faz a abertura, declarando que as novelas refletem a realidade do país. Esse discurso – alusivo a uma mais clara incorporação dos movimentos sociais e lutas políticas na teledramaturgia atual – pode ter se intensificado após a posse do governo Lula, mas não é novo, nem exclusivo da emissora: está presente em algumas teses acadêmicas.

E está associado a outro elemento que nos interessa muito de perto: a idéia segundo a qual as novelas trazem para o seu público a reflexão. O depoimento de atores e diretores dão bem a medida do que estamos afirmando. No Especial 40 anos das telenovelas, Vinícius Dônolla volta a insistir sobre o tema ficção e realidade e é Tony Ramos a transmitir uma idéia geral sobre essa relação:

Vinícius Dônolla: “Melhor do que ninguém, atores sabem o quanto a ficção influencia a realidade.” Tony Ramos (concedendo seu depoimento no local em que fora filmado o capítulo em que ele e outra personagem de ‘Mulheres Apaixonadas’ são baleados): “Não podemos acreditar que mexemos de tal forma e que mudamos de tal forma a vida das pessoas. Não! Nós propomos com eles a discussão dessas vidas.” (grifos nossos)

A Globo exibe orgulhosa mostras de seu poder de influência sobre o público. Exemplos estão em toda parte (iniciando pelo papel de polícia que exerce através do programa Linha Direta). Mas sublinha: ‘sem imposições’, movendo seu público na direção de ações pela cidadania.

Na fala do diretor Jayme Monjardim, um misto de surpresa e gratificação, na constatação de que, com a TV, os resultados a uma proposta são obtidos velozmente:

“Você planta uma idéia e minutos depois você já está colhendo isso. De repente uma campanha anti-drogas para um país inteiro e o país inteiro adere…” (ao fundo, cenas de O Clone, 2001). “De repente, você plantou a idéia de doação de órgãos e…” (ao fundo, cenas de ‘De corpo e Alma’, 1993).

No mesmo Programa, Glória Perez, a autora dessas novelas dá seu depoimento: “Quando eu fiz a campanha dos transplantes, recebi carta de agradecimento do INCOR, dizendo que, pela primeira vez, tinham chegado corações a mais.”

Mostrar o seu papel como propulsora de reflexão e prestadora de serviços de utilidade pública, formação de cidadania; visa converter suas ações em forma a mais de auto-propaganda; as falas dão a dimensão das ações sociais pelas quais a Globo quer ser reconhecida como precursora.

À época dos militares, segundo a emissora, suas telenovelas teriam ocupado, eventualmente, o lugar do jornalismo na tarefa de criticar a realidade, uma vez que este era fortemente vigiado:

“Durante o regime militar, em que o jornalismo da Rede Globo – em alguns casos, mais do que outros veículos de comunicação – era cerceado pela censura, coube à dramaturgia desempenhar a tarefa de retratar e criticar a realidade política e social do país. Com toda essa força de comunicação – e acima de tudo por sua aceitação pelos brasileiros -, a emissora é hoje uma das mais importantes fontes de difusão cultural dentro e fora do Brasil.” (Luis Erlanger, Diretor da Central Globo de Comunicação, ‘Apresentação’ in: Dicionário da TV Globo, Vol I, Rio de Janeiro, Jorge Zahar editor, 2003:ix).

No já citado Especial 40 anos de telenovela, no esforço de revolver o passado, desenterrar dele uma imagem ‘subversiva’ e corajosa para a Globo, a edição pôs-se a esmiuçar as novelas do período militar, revelando ao público – com décadas de atraso, então – que o que se mostrava eram traços sutis de rebeldia e crítica social. Pela lógica expressa no documentário, as novelas exprimiam a crítica social, desafiando, para tanto, o poder dos militares. Um exemplo: afirma que a novela ‘O Bem Amado’, de Dias Gomes, de 1973, continha a crítica à mortalidade no Nordeste:

Vinícius Dônolla: “Real, surreal. No tempo em que as palavras eram proibidas, as imagens de um Brasil fantástico driblavam a censura.” (ao fundo, cenas do personagem Odorico Paraguaçu, personagem vivido por Paulo Gracindo, discursando do palanque, na novela ‘O Bem Amado’, de 1973) Segue-se depoimento do ator Lima Duarte: “Sucupira era a cara do Brasil; de um Brasil que não podia se expressar, um Brasil que não podia falar. Era um país onde não morria ninguém, no Nordeste. Quer ironia maior que esta? Não morria ninguém; ele (o prefeito Odorico Paraguaçu) não conseguia inaugurar o cemitério, porque não morria ninguém.” (ao fundo, cenas da mesma novela, em que o próprio prefeito morre e, finalmente, será possível inaugurar o cemitério da cidade). Vinícius Dônolla: “A crítica se fez pela sutileza; mais tarde, a novela recontou a história do Brasil…”

A mesma novela é comentada, como exemplo de crítica bem humorada. Novamente é destacado o papel da Globo em driblar a censura:

“Décadas de história. (…) Vencemos a censura nos anos 80, falando de tramóias e corrupção; algumas vezes com uma visão crítica e contundente da realidade, outras, com uma boa dose de humor.”

Adiante, outra novela de Dias Gomes é relembrada: ‘Saramandaia’, de 1975. Explica-se, quase 30 anos depois, que o personagem que tinha asas e voou no capítulo final representava a liberdade: “João Gibão voou sobre a cidade de Bole-bole. Em ‘Saramandaia’, Dias Gomes sugeriu o vôo da liberdade nos tempos de repressão. Realidade, porém fantástica.

Eis que a Globo, para muito além de buscar defender-se da acusação de conivente com os desmandos autoritários ou de porta-voz dos interesses das classes dominantes, lança-se para o terreno de vanguarda. Assim, a considerar por sua auto-imagem, através das novelas, sempre esteve em sintonia fina com os anseios populares por valores como a liberdade de expressão e a igualdade e justiça social. Mais que a atualização dos conteúdos e formatos de itens da programação, a Globo parece tentar remover da memória coletiva a idéia segundo a qual teria tido algum tipo de colaboração com os governantes nos tempos ‘de chumbo’, apagar, definitivamente, essa espécie de ‘mancha’ que tem marcado sua história. A considerar pelo discurso atual desta importante empresa de comunicações, ela não estaria simplesmente tentando adaptar-se, nas últimas décadas, aos ares da redemocratização do país e da América Latina, ela postula ser reconhecida como agente central desse processo. Na história que refaz e divulga, teria até mesmo feito parte da resistência à ditadura.

Telenovelas: para elas, o tempo não para, ou assistimos a um museu de ‘grandes’ novidades?

Ainda que não esteja descartada a capacidade do público de produzir usos originais a partir dos media, isto é, de reelaborar-lhes os significados, permanece válido o afirmado por Sarques (1983:226), a respeito da legitimação dos valores dominantes:

“… a novela, na medida em que legitima, de forma explícita ou latente, os valores dominantes com os quais as telespectadoras se identificam, concorre para mantê-las conformadas à ordem vigente e reforçar a reprodução da ideologia que alicerça a estrutura de dominação e discriminação.”

Afinal, somos levados a indagar: continua atual a reflexão sobre o caráter tendencioso dos media? A própria junção cada vez maior entre ficção e realidade representa, segundo nossa opinião, a superficialidade, a fragmentação, a banalização de tudo, em resumo: a exacerbação da era do espetáculo, tal como definida por Debord (1997). No referente às telenovelas, vale revisitar os estilos de narrativas e as marcas impressas pelos autores e diretores que, agora, mais que nunca, vêm aparentemente incorporando a realidade, mas fazendo, de fato, o vasto uso do ‘velho’ naturalismo, enfatizando a afetividade, recorrendo à simbologia; cabendo-nos investigar se, ainda que a pretexto de provocar a reflexão e incitar a imaginação, tais elementos articulam-se ou não de modo a delimitar o campo dentro do qual deve se dar o debate. Numa outra linha de proposição, poderíamos indagar: Quanto espaço uma telenovela deixa à livre interpretação? Ou, ao contrário, esse gênero é fechado em si, conduz sutil ou abertamente a uma moral, a uma conclusão unívoca? E que papel as novelas de fato desempenham se, a despeito de darem maior visibilidade aos movimentos sociais e à organização sindical e demais lutas coletivas dos trabalhadores, o fizerem a partir de referenciais patronais ou de construções que imitam o movimento real, subtraindo-lhe, porém, aspectos essenciais ao representá-lo na ficção? Trazer ‘mais realidade em cena’ pode surgir como forma a mais de ‘domesticação’ do protesto e não de – como quer fazer crer a Globo – propor a reflexão e/ou a mudança. A reflexão, nesse caso, já comporta soluções. Muitas vezes – ainda que, aparentemente contemplando anseios populares – traz em si respostas alinhadas com o pensamento das classes dominantes, para as quais talvez não interessem alterações sociais profundas.

Embora, na atualidade, a Globo busque destacar exclusivamente o caráter inovador e/ou contestador de suas novelas, mesmo sob a ditadura militar, o que se vê, conforme indicam estudos realizados sobre novelas dos anos 70, é a sintonia entre telenovelas e políticas governamentais (Khel, 1986b); (Ramos e Borelli, 1991). À época da ditadura militar no Brasil, a esfera estatal solicitava – e a Rede Globo a ela correspondia – uma programação televisiva com enfoque nacionalista e temas considerados educativos, o que envolvia as telenovelas.

Ao problematizarmos o poder excessivo e a interferência dos meios de comunicação, para o caso brasileiro, cabe indagar se é louvável ou deplorável para a democracia que sejam as novelas a abordar a ‘realidade’ e apresentar, segundo a lógica da emissora que a produz, alternativas. Martín-Barbero (2001) menciona o desproporcional espaço ocupado pelos media em países da América Latina, apontando a debilidade das sociedades civis como um dos fatores para essa desmedida capacidade de representação que neles adquire a televisão. O espaço e assumido cada vez mais pelo ritmo e presença da TV e da linguagem publicitária têm consequências e riscos. Estamos de acordo com a afirmação de Beatriz Sarlo:

“Pois bem, se os conflitos não são apresentados pela política, as mídias tomam seu lugar, indicando outros caminhos pré-políticos ou antipolíticos para resolvê-los (…)”10.

No caso da Rede Globo e as formas como busca articular-se como estrutura de poder, importa antes de mais nada o discurso generalizante, em torno da suposta identidade (cultural) nacional, da qual faz derivar seus slogans: ele comporta deformações e pressupõe conformismos, exclusão e preconceitos. Confere ao fenômeno – contraditório e em que as modificações são permanentes – uma aparência unificada e estável. Segundo Hall (1997:10):

“A identidade totalmente segura, completa, unificada e coerente é uma fantasia. Ao contrário, à medida que os sistemas de significado e de representação cultural multiplicam-se, confrontamo-nos com uma multiplicidade desconcertante e fugaz de identidades possíveis (…).”

Mas o fato a enfatizar é que a emissora – não mais exclusivamente com base na programação que leva ao ar – vem buscando ampliar por meio de ações concretas a sua esfera de influência. Sob o risco de realizarmos uma análise ultra simplificada, que encara o discurso publicitário da emissora como encerrado sobre si mesmo, carente de materialidade, é fundamental que, ao lado da vasta propaganda, destaquemos a presença efetiva – e crescente – das Organizações Globo em ações sociais.

A Globo investe, diretamente ou através de sua Fundação Roberto Marinho, criada em 1978, em projetos nas áreas de educação, saúde e cultura: Criança Esperança, Geração de Paz, Amigos da Escola, Ação Global, Jornalismo Cidadão. Também há formas de ação, como o chamado ‘comercial social’, em que a emissora abre espaços, gratuitamente, em seus intervalos comerciais, para mensagens sociais e comunitárias tais como: campanha de amamentação, doação de sangue, contra a dengue, parcerias contra as drogas, bem como com a Fundação Abrinq (brinquedos para a criança) e com a Fundação Onda Azul (Reciclagem, Ecologia). Destaca-se ainda o ‘mershandising social’, este, um conceito criado pela própria Globo, envolve diretamente suas telenovelas, as quais devem – segundo a emissora – sempre abordar um tema de importância social, dentre os mais recentes, destacam-se: respeito aos idosos, campanha contra o alcoolismo, contra drogas, pela doação de medula óssea, prevenção da Aids, pela adoção de menores (Ver site da Rede Globo).

Para Mattelart, Xavier & Mattelart (1987:127) fundações como as da Globo são

“…mecanismos poderosos que permitem a essas empresas (…) ampliar consideravelmente suas funções sociais. Podemos facilmente imaginar a importância dessas zonas de influência não-tradicionais para a introdução das novas formas de ação cultural.”

Destaque-se, ainda, a eficácia de sua suposta colaboração junto a instituições da Justiça, vide o programa ‘Linha Direta’11. A emissora tem se orgulhado em afirmar que, em quatro anos e meio de exibição, o programa auxiliou na captura de mais de 283 pessoas que estavam foragidas da justiça. Eis o peso de sua influência. Cabe destacar esse novo arranjo ou deslocamento, em que a Globo assume para si ainda mais parcelas de responsabilidades sociais (tradicionalmente atribuições do Estado), e simultaneamente trata de intensificar a propaganda (que sempre promovera) coroando seus supostos méritos.

Miceli (1984:51) refere-se à publicidade oficial no pós-64: “O Estado avoca a si o papel de manter acesa a chama da memória nacional e por conseguinte se transforma no criador e bastião da identidade nacional.”

Na atualidade, de mero veículo dos slogans oficiais dos governos militares, a emissora teria passado, pouco a pouco, a formular, por si, metas e responsabilidades para com a preservação da cultura, do patrimônio histórico, bem como melhoria da saúde e da educação, ou ainda contra a violência urbana entre outras, e a fazer cumpri-las – orientadas, naturalmente, a partir de suas próprias concepções políticas e culturais -, e acompanhadas de respectiva propaganda integradora.

Notas

  1. Cf. Keila Jimenez e Sônia Apolinário. “O preço da hegemonia”. In ‘Telejornal’, ‘O Estado de S. Paulo’, 28/05/2000.
  2. Cf. “Um dia em Asa Branca” In ‘Veja’, 02/10/1985.
  3. Cf. dados citados em “Carrossel Mexicano” In ‘Veja’, 12/06/1991.
  4. No Brasil, o documentário teve sua exibição proibida no MIS, São Paulo. Exibido por sindicatos e entidades estudantis, foi depois registrado no livro: Geraldo Anhaia Mello. Muito além do cidadão Kane. São Paulo: ed. Pagina Aberta Ltda., 1994.
  5. Roberto Irineu Marinho, então vice-presidente, em convenção interna, fevereiro/1994, citado em Bucci (1996:163).
  6. A associação iniciada em 1962 entre a Globo e a Time-Life foi contestada juridicamente. O Código Brasileiro de Telecomunicações e o Regulamento dos Serviços de Radiodifusão foram violados pelos contratos assinados pela Globo com a Time-Life. Instalou-se Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar as ligações entre a emissora e o grupo norte-americano – consideradas ilegais, sobretudo pela associação com capital estrangeiro. A documentação acusatória foi considerada insuficiente e o processo encerrado, dando livre curso ao acordo. Daniel Herz. A história secreta da Rede Globo. Porto Alegre: Tchê! Editora Ltda., 1987.
  7. Depoimento de Walter Clark, numa palestra em 06/07/1976 (cf. Kehl, 1986a:205).
  8. Cf. dados de “Os paradoxos da TV no seu cinqüentenário”. In: ‘O Estado de S. Paulo’, Caderno 2 – p. D1, 18/06/2000.
  9. Cf. Revista Época, Caderno Especial, 11/08/2003.
  10. Sarlo apud Martín-Barbero (2001:98).
  11. Programa semanal que vai ao às 5as feiras, em que são reconstituídos casos policiais e disponibilizado no de telefone para denúncias do paradeiro de ‘foragidos da justiça’. A encorajá-las, a ressalva: “Sua identidade será mantida no mais absoluto sigilo”.

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Texto publicado originalmente no livro: BEZZON, Lara (org.). Comunicação, Política e Sociedade. Campinas-SP, Ed. Alínea, 2005, pp. 151-175. ISBN: 8575161148).

Márcia Fantinatti é jornalista e socióloga, é doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas, professora do Instituto de Artes e Comunicações – Departamento de Jornalismo – da Pontifícia Universidade Católica de Campinas.

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