Estação Jabaquara – Caminhantes além das linhas

Marta Maia

Somos a utopia realizada, bem ou mal,
em face do utilitarismo mercenário e mecânico do Norte.
Somos a Caravela que ancorou no paraíso
ou da desgraça da selva…
O que precisamos é nos identificar
e consolidar nossos perdidos contornos
psíquicos morais e históricos.
(Oswald de Andrade)

Nas ruas da cidade multidões apressadas deslizam pelo duro asfalto da enegrecida paisagem. Pegam ônibus amarelos, brancos, pretos, vermelhos de raiva e pardos de poluição. Enfrentam esta terra de frente e encontram a sua história nas esquinas, nos becos, nos barracos, nas casas, nos arranha-céus, nos escritórios, nos estádios, nas praças, nos cinemas, nas idéias. Na cidade prometida o “progresso” não é para todos, mas todos querem alcançá-lo. Este painel multifacetado revela a vida vivida de uma gente que é povo, mas tem rosto, tem individualidade e tem história.

A heterogeneidade de São Paulo é componente essencial de sua trajetória e de sua existência. Os traços deixados pelos índios, colonizadores, escravos, imigrantes e mais recentemente pelos milhões de migrantes, formam um quadro surreal de uma complexa realidade, que comporta a dor e a deliciosa esperança em sua antropofagia futurística. “Que somos nós, forçadamente, iniludivelmente, senão futuristas – povo de mil origens, arribado em mil barcos, com desastres e ânsias?”1. Esta interpretação oswaldiana do início do século continua imanente na cidade dos dias de hoje e representa uma visão multifocal dessa terra mãe que olha por seus filhos.

Somos a utopia realizada, bem ou mal,
em face do utilitarismo mercenário e mecânico do Norte.
Somos a Caravela que ancorou no paraíso
ou da desgraça da selva…
O que precisamos é nos identificar
e consolidar nossos perdidos contornos
psíquicos, morais e históricos.
(Oswald de Andrade)

E pensando na frenética edificação dessa megalópole é que toneladas de cimento, de aço, e de paciência são despejadas cotidianamente em seu seio. Afinal, como se locomover em uma cidade que não pára de crescer? Pessoas guiadas pelo ritmo dessa cidade, locomovendo-se em direção ao seu destino. Torna-se cada vez mais difícil transitar pelas ruas, seja sob rodas ou a pé; o asfalto irradiando calor, os olhos impossibilitados de verem o sol coberto por uma espessa camada cinza. Pessoas procuram locomoção, atiram-se para debaixo da terra, em busca de um atalho. Seguindo o exemplo de alguns animais, o homem cava buracos para poder arejar o caminho de todo dia. Como na natureza, estes espaços comportam uma diversidade infinita de seres.

Nasce um arrojado meio de condução, embaixo do asfalto, absorvendo estes corpos frenéticos. São tantas as paradas que é preciso descer em uma estação e fazer dela um ponto de partida para a construção desta história paulistana. A escolha recai sobre o ponto final da linha norte-sul – Jabaquara – que revela fragmentos desse rico universo social, cujas mentes laboriosas planejam, sonham, sentem, esperam. É incrível a biodiversidade do local, são muitas humanas espécies que transitam pelos túneis da estação. Como a cobertura é muito ampla, é preciso ainda fazer um ajuste no foco das lentes que buscam captar esse retrato. A imagem que surge é a da mulher. Ela que, seguindo o exemplo de seu habitat, procura estar sempre em transformação, já não trabalha somente em casa, mas vai à luta para suprir necessidades econômicas e também conquistar o seu espaço em um restrito mercado de trabalho.

Maria, Vanessa, Vera, Cleonice e Hercília já devem ter-se esbarrado algumas vezes na estação Jabaquara do Metrô de São Paulo. Elas, assim como muitas outras, possuem vários aspectos em comum, embora nem se conheçam. Todas elas, além de freqüentarem os trens do Metrô, também encontram-se ligadas pela ancestralidade da mulher mãe generosa que sai de casa com o intuito de prover a si e ao próximo.

Os motivos que as desafiam a buscar novos horizontes podem ser vários: a realização profissional, a necessidade de contribuir para a manutenção da família ou ainda a vontade de participar de um universo mais amplo do que as fechadas paredes de suas moradas. No entanto, embora estas mulheres possam aproximar-se por intermédio destas perspectivas, elas carregam histórias de vida que expressam a heterogeneidade de típicas moradoras de uma cidade intempestiva, embora acolhedora. “A retomada da esperança aqui se dá, apesar da poluição que tolhe o Sol”2.

As ruas da pequena São Paulo de 1900
enchiam-se de fios e postes…
…A cidade tomou um aspecto de revolução.
Todos se locomoviam, procuravam ver. E os mais afoitos
queriam até ir à temeridade de entrar no bonde,
andar de bonde elétrico!
(Oswald de Andrade)

Jabaquara, do tupi-guarani Yab-a-Quar-a (rocha e buraco), foi constituindo-se a partir da passagem dos bandeirantes em sua busca de ouro e índios. Somente com a transferência do Matadouro Municipal, em 1886, para esta região, é que os “ares do progresso” sopraram forte, pois era necessário manter uma relação comercial com o centro, o que levou à criação de uma linha de trem a vapor. O sistema de transporte vai evoluindo e em 1930 o bonde começa a andar nos trilhos e o céu passa a ser usado, em 1940, com a inauguração do Aeroporto de Congonhas. Finalmente, em 1974, chega o Metrô, conduzindo pelos sucos abertos no subterrâneo; este é o momento em que a zona sul paulistana sofre uma reorientação urbana: “Em 1975, a Vila Mariana registrou não apenas o maior crescimento imobiliário de sua história, como o maior crescimento de São Paulo. As novas construções, quase sempre prédios, foram 29% mais numerosas que no ano anterior… O comércio, por sua vez, também apresentou um grande crescimento”3.

— Parece coração de mãe; acolhe todo mundo. Assim Maria Aparecida dos Santos, 46 anos, define São Paulo. Ela veio para cá com apenas 9 anos e hoje divide sua “casinha”, situada na favela de Americanópolis, com mais 10 pessoas, entre filhos, genro, netos e marido. Este contingente familiar é um pequeno recorte da Zona sul, que comporta 930 favelas, com o maior número de habitantes da cidade – 30% da população paulista vive nesta região.

Trabalhando há dois anos no Terminal do Jabaquara, ela conta que não se cansa de limpar os escritórios utilizando os acessórios adequados, — pois a gente sempre deve usar botas na época de lavação, usar a luva azul para o banheiro e a verde para lavar as pias. E usar a esperança para falar de sua vida e de sua família: — sempre cheia de problemas, mas com muita disposição para enfrentar as dificuldades do dia-a-dia.

Maria divide sua história com muitas outras mulheres que vivem sua rotina diária entre o trabalho formal e as atividades domésticas. — No momento eu tenho a ajuda da minha filha casada que está morando comigo, mas é sempre eu que faço o serviço de casa. Eu estou fazendo alguma coisa o tempo todo e estou sempre preocupada, acho que é por isso que tenho problemas de pressão. São muitas pessoas pra cuidar. Maria, assumindo o mesmo sentimento da cidade que recebe ininterruptamente pessoas de todos os tipos, abre um largo sorriso de satisfação ao falar de sua gente.

— Às vezes vou a pé para casa, pois se as crianças pedem um pacote de bolacha ou um doce eu não consigo recusar o pedido. Não, não compro com dinheiro, uso mesmo os passes que ganho todo mês. Eles servem de dinheiro para a compra de um gosto. A distância não inibe a generosidade de Dona Maria que nestes dias tem que andar quase uma hora para chegar em casa.

Mas ela não caminha sozinha. Esta situação estende-se a muitas pessoas que passam todos os dias na Avenida Engenheiro Armando Arruda Pereira – próxima da estação. É possível flagrar uma verdadeira procissão ao cair da tarde. São homens e mulheres que só conseguem o suficiente para “tomar o Metrô”, abstendo-se de usar o Terminal Metropolitano de Integração. Em grupos ou sozinhos, estes caminhantes tentam driblar a crise usando os pés como veículo. Do Jabaquara para a Vila do Encontro, Cidade Vargas, Americanópolis, Vila Facchini, Jardim Miriam e até a divisa de Diadema, o itinerário, que pode chegar a 6 Km, é percorrido seguindo esta imensa avenida, ocupada, no corredor central, pelo sistema de integração dos trolebus. Uma das portas de entrada e de saída para o ABCD.

Cleonice Del Buone, 47 anos, é mais uma destas pessoas que enfrentam corajosamente a topografia do Jabaquara, com suas subidas e descidas, até o descanso diário. Bom, não no caso dela, afinal ela é mulher: — eu chego em casa e já vou preparar a comida para o dia seguinte, além de cuidar das roupas e da limpeza da casa. Com dois filhos e um marido aposentado, ela teve que voltar a trabalhar após 25 anos de vida doméstica.

O desemprego e a deterioração da renda familiar têm levado um número maior de mulheres a ingressar no mercado de trabalho. Os dados também revelam que o aumento crescente da participação feminina neste mercado é resultado de uma maior participação das mulheres na faixa de 25 a 40 anos ou mais, diferente da situação masculina, que teve uma queda das taxas nos últimos anos. O problema é que as mulheres ganham menos do que os homens e sofrem mais com a recente tendência à precarização do trabalho.

— Antes eu ficava só em casa, cuidando dos filhos, do marido, eu não tinha muito contato com as pessoas. Agora eu tenho amigos no trabalho e minha vida mudou muito porque antes eu só ficava esperando o marido chegar do serviço. Eu acho que quando a mulher trabalha, ela se desenvolve mais do que quando fica só em casa; pode comprar suas coisas, não precisa depender dos filhos, do marido. Agora eu recebo o meu pagamento e isso é muito bom. E eu digo mais: tem os dois lados, o dinheiro e o contato com as pessoas. Cleonice, embora tenha trabalhado na juventude, seguiu o modelo familiar vigente permanecendo 25 anos como dona de casa. Saiu para trabalhar e acabou descobrindo uma nova maneira de viver.

Acabou encontrando emprego em uma área em que é mestre-cuca: na cozinha. Há nove meses ela acorda as 5h30, toma o trem do Metrô por volta das 6h, vai até a Estação Sé e inicia a sua jornada diária como ajudante de cozinha em uma doceria. Sua história com o Jabaquara começou aos 14 anos, pois com esta idade, ela que nasceu e foi criada na Vila Ré, veio morar e trabalhar como empregada doméstica. Ficou neste emprego até os 21, quando casou-se e iniciou a vida “do lar”.

Como antiga moradora do bairro, ela relembra o tempo em que tinha que pegar ônibus. — Ele demorava muito, já o Metrô facilita a vida de todo mundo, pois é um meio de transporte mais rápido do que os ônibus. Eu não tenho nem palavras para analisar a chegada do Metrô. É só reparar quando tem greve dos metroviários, a cidade fica um transtorno.

A linha norte-sul, a primeira da rede básica do Metrô, quando entrou em operação, em 1974, trouxe consigo uma nova arquitetura para a região. Outros projetos foram sendo implementados e a intervenção pública chega, nesta região, em 1976, por intermédio do Projeto CURA – Comunidades Urbanas de Recuperação Acelerada, uma parceria entre o BNH e a prefeitura municipal, que implementa obras de infra-estrutura na região, como saneamento básico, pavimentações, canalização de córregos e superestrutura como a edificação de um Pronto Socorro, Posto de Bombeiros, Terminal de Ônibus, além da criação do Centro Cultural Jabaquara. O bairro vai mudando como conta um antigo morador:

— Quando eu cheguei no bairro só tinha passarinhos, depois chegou o progresso, começou a botar luz, ônibus, água e começou a entrar a malandragem também. Aqui modificou tudo, né?, chegou o metrô, veio a desapropriação, terras vazias, acabaram as indústrias… com essas mudanças diminuiu o movimento do bar… vieram pessoas novas… as pessoas pobres não puderam mais ficar aqui… antes eu atendia mais operários, havia indústrias que foram desapropriadas… hoje não tem mais operários, só bancários, funcionários públicos, e esses não gastam nada… hoje não tem pedreiro não, essas obras são todas feitas com máquinas… Naturalmente nestes tempos agora não está dando quase nem mais pras iscas. Tá um fracasso que a gente até desanima4.

Uma obra desta envergadura só pode desencadear uma grande renovação urbana, ocasionada principalmente pelas desapropriações. Um exemplo é próprio Pátio de estacionamento e oficinas do Jabaquara que ocupa uma área de 260 mil metros quadrados. É a cidade crescendo e lançando sua pobreza para a periferia.

São Paulo! Comoção de minha vida…
Os amores são flores feitas de original…
Arlequinal!… Traje de losangos… Cinza e ouro.

Luz e bruma… Forno e inverno morno…
…São Paulo! Comoção de minha vida…
Galicismo a berrar nos desertos da América!
…São Paulo é um palco de bailados russos.
Sarabandam a tísica, a ambição, as invejas, os crimes
e também as apoteoses da ilusão…
(Oswald de Andrade)

Sarabandam também por aqui engenheiros, técnicos, mestre-de-obras e alguns políticos que avistam nas construções o alicerce de suas plataformas e ações. São obras e mais obras. A criação do Terminal Intermunicipal do Jabaquara, em 1977, também está inserida neste contexto. Foi facilitada pela existência de uma Estação do Metrô, pela proximidade com a Rodovia dos Imigrantes e pela necessidade de aliviar os terminais rodoviários João Caetano e Glicério, que antes faziam a rota para a baixada. A inauguração do TIJ elevou o movimento de usuários do sistema metroviário, que já no primeiro ano de funcionamento elevou a estação Jabaquara para a terceira de maior movimento da rede.

A procura pelo lazer mais barato salta aos olhos de quem permanece por alguns minutos neste Terminal. Bolsas, sacolas, malas expectativas, algazarras e até pranchas de surf ocupam o local, em especial nos finais de semana e feriados prolongados. Entretanto, se este olhar conseguir enxergar um pouco além será possível ver que a relação com a baixada santista revela intenções que vão além do lazer. Nos momentos de pico do horário comercial é gente de todo tipo, raça, crença e jeito de ser. Buscam na metrópole a esperança de dias melhores, já que a crise impele-os à busca de novas saídas.

Hercília Damasceno da Silva, 51 anos, moradora da cidade de Santos há sete anos, é mais uma arrojada personagem deste cenário paulista que tenta arrancar, desta terra, um pouco de sustentação para sua família. O seu ritual assemelha-se ao de muitas mulheres que circulam pelo Terminal. Toda semana ela vem fazer compras em São Paulo para depois revender os mais variados produtos em uma barraca próxima do canal 6 da praia santista.

Querer é poder. Ela baseia-se neste “surrado” ditado popular para construir sua vida, pois mesmo sendo filha adotiva do estado, já que nasceu em Londrina, no Paraná, aos 12 anos conheceu a capital e foi ficando. Aqui casou-se, com 19 anos, sempre acalentando o sonho de morar em Santos. — Eu e meu marido somos dois aventureiros, embora pensando sempre no futuro, afinal temos quatro filhos. E tanto fizeram que conseguiram, após muito tempo, morar na terra sonhada.

O problema é que somente o emprego como instrumentadora cirúrgica na Casa de Saúde não resolve as dificuldades financeiras de Dona Hercília. As histórias se encontram, assim como Cleonice, o marido é aposentado e os rendimentos precisam ser ampliados. Daí a barraca em sociedade com o filho. A existência de uma estação do Metrô facilita sua vida: — Acho o Terminal muito prático. Chego de Santos em 55 minutos, pego o metrô até o Brás, às vezes vou até a 25 de março, aí volto rapidinho, sem precisar carregar muitas sacolas pela cidade. É excelente.

As sacolas cheias são carregadas com dificuldades por braços que sofreram um acidente recentemente. — Fui atropelada por uma moto e um de meus pulsos ficou bem complicado e acabei ficando com problemas, mas assim mesmo não parei de trabalhar; não posso me dar a esse luxo. Também prefiro vir sozinha, pois homem não tem paciência para pesquisar preços e pechinchar.

Talvez essa seja uma das características marcantes da mulher que tem buscado na participação autônoma de vendas uma fonte de renda significativa para a sobrevivência familiar. Neste caso, Dona Hercília enfrenta uma tripla jornada de trabalho, confirmando os dados de que mesmo trabalhando mais horas que os homens, as mulheres não conseguem atingir o mesmo patamar salarial. Na média, enquanto o homem ganha R$ 995,00, a mulher recebe somente R$ 585,00, segundo dados do Seade (Fundação do Sistema Estadual de Análise de Dados) e do DIEESE (Departamento Intersindical de Estatísticas Sócio-econômicas).

Assim como há pessoas que vêm à metrópole para comprar, outras vêm para vender, vender mão-de-obra. É o caso de Vanessa Eburneo Rodrigues, 21 anos, freqüentadora assídua do Terminal do Jabaquara. Ela é um exemplo de que a juventude não está por fora desta narrativa, construída a partir das histórias de vida dos habitantes desta paulistânia polifônica. Enfermeira formada em 1997 pela UniSantos (Universidade Católica de Santos), reside em Cubatão, mas está sempre subindo a serra. — Estou procurando emprego. Tenho vindo direto pra Sampa; fazendo provas, entregando currículos e batalhando alguma vaga. Já procurei na baixada, mas está difícil. O negócio é subir e tentar arrumar alguma coisa por aqui mesmo, não se pode desistir, tem que procurar.

A vontade de Vanessa é conseguir um ou mais empregos em São Paulo e poder morar em um lugar onde, segundo ela, as oportunidades são maiores pra tudo: amizade, emprego e lazer. A reclamação fica por conta da demora entre os ônibus que vão a Cubatão; de uma em uma hora. A cena sempre se repete, basta chegar cinco minutos atrasada e aí são 55 minutos de espera sentada em um dos muitos bancos espalhados pelo saguão de espera. Enquanto o ônibus não vem, quem chega são as palavras que começam a dar sentido para fatos ocorridos, reflexões ou simplesmente histórias ocorridas em sua volta.

— Eu gosto de escrever para registrar a minha vida e as coisas que acontecem em torno de mim. Eu já anoto tudo faz cinco anos e sempre que posso vou até a minha agenda-diário para relembrar o passado. Eu acho que um dia esse meu hábito ainda vai me ajudar muito. É uma pena que tenha destruído algumas folhas há alguns meses, pois meu namorado era muito ciumento e não queria saber do meu passado. Como fui burra! Agora nem estou mais com ele. Mas foi bom acontecer, pois não vou mais deixar ninguém se meter em minha vida e em meus escritos.

A emancipação feminina traz muitas histórias correlatas a essa, mas vale frisar que a mulher mais jovem tem tentado buscar sua qualificação e sua independência. Isto pode ser notado até em sua capacidade de locomoção. Há algumas décadas não seria possível encontrar tão facilmente uma jovem saindo de sua casa para ir procurar emprego ou até mesmo para passear, afinal Vanessa viaja sozinha desde os 16 anos de idade.

Como nem só de números vive o ser humano, Vanessa deixa de lado a sua preocupação com o desemprego e faz uma digressão: — o mundo é tão grande e a gente nem percebe, pois às vezes penso que conheço tanta gente, mas quando fico aqui esperando o ônibus e olho para o rosto de todo mundo, eu penso “pôxa, não conheço ninguém!”. O que eu acho legal do Terminal é que a gente vê cada coisa diferente e fica observando e sorrindo e até sofrendo junto. São brigas de casais, namorados carinhosos, encontros de parentes. Já fiquei emocionada várias vezes, afinal o sentimento de outras pessoas mexe com a gente. Calor solidário de ser humano que reconhece o seu próximo, de mulher que deixa fluir suas emoções, de gente que se encontra com o outro.

Segundo a Organização Internacional do Trabalho, mais de 45% da população feminina mundial (entre 15 e 64 anos) é hoje economicamente ativa. Entretanto se as mulheres ampliam sua participação neste mercado, elas também sentem o aumento da taxa do desemprego. “Como conseqüência do aumento da participação e do fraco ritmo de ampliação da ocupação, elevou-se a taxa de desemprego feminina na Região Metropolitana de São Paulo. Em 1997, 18,3% da População Economicamente Ativa feminina encontrava-se nesta situação. Este patamar é o mais elevado desde o início dos anos 90”5.

A plenitude cafeeira e pastoril de nosso
Estado se destende ao hinterland que foge
num último galopar de índios e de feras!
A cada investida vitoriosa, os novos
bandeirantes são a reencarnação
estupenda da luta, a magnífica,
a eterna ressurreição simbólica da força!
(Oswald de Andrade)

Somente nos seiscentos é que a região do Jabaquara começou a receber sitiantes e fazendeiros que construiriam, nestas paragens, suas propriedades rurais. A inexistência do cal e a dificuldade de se encontrar pedra obrigaram o paulista a construir casas de barro ou de terra e a técnica escolhida foi a da taipa de pilão, que é como foi construída, em 1719, a casa sede – existente até hoje – do Sítio da Ressaca. Esta construção, tombada pelo patrimônio histórico, é uma das poucas imagens que sobrou deste período, afinal toda a paisagem da zona sul sofreu um grande processo de transformação. Dentro deste contexto de mudanças é edificado, no interior deste Sítio, o Centro Cultural do Jabaquara.

E é neste chão que a última personagem deste enredo polissêmico entra com seus pés descalços. A professora de dança afro-primitiva, Vera Cristina de Oliveira, 27 anos, recupera a sua cultura negra e a sua ancestralidade africana. Todas as semanas ela contagia suas pequenas alunas que vão recebendo, com muita intensidade, um pouco da história de um povo que está entranhado na história brasileira.

A idéia é trabalhar o corpo e a mente, em um mesmo ritmo. — Em primeiro lugar eu ajudo às crianças a ter uma conscientização corporal, pois elas têm que estar bem com o corpo. Não adianta sair daqui sentindo dores na coluna, então eu vou passando algumas informações, através de uma linguagem simples. É importante tomar muito cuidado com o corpo porque a dança afro é muito forte, então eu faço muitos exercícios de aquecimento antes de começarmos os ensaios e vou mostrando os possíveis problemas que uma falta de consciência corporal pode trazer.

Como a dança afro trabalha com elementos da natureza, representados pelos orixás, o aspecto subjetivo adquire uma dimensão essencial nessa atividade. — As crianças, que hoje estão muito afastadas do contato direto com água, com os animais, com as plantas, às vezes têm dificuldades de se perceberem, por exemplo, como uma árvore, daí a minha responsabilidade em ir buscando exemplos do cotidiano para, aos poucos, recuperar o universo lúdico tão próprio da criança. Esse ritual já vem sendo desenvolvido há três anos no denominado Centro Cultural Jabaquara, que atualmente abriga uma biblioteca infanto-juvenil e de adulto e o Acervo da Memória e do Viver Afro-brasileiro.

Vera conversa bastante com suas alunas – brancas e negras – sobre o preconceito racial e a discriminação, sempre tentando mostrar que não deve haver diferenças entre elas. “Nessa dinâmica social de definições e redefinições, é imprescindível o conhecimento da matriz africana presente tanto na cultura material como nos valores brasileiros, que por razões da ideologia da democracia racial tem sido mantida invisível ou camuflada”7.

O carinho também faz parte da didática desta arte-educadora, que está constantemente demonstrando para as crianças a importância do respeito entre os seres humanos. — A gente trabalha com muito amor… eu me preocupo muito com a vida delas, se elas almoçaram, se estão bem na escola. Muitas crianças que nunca tinham tido um contato mais direto com a cultura afro pôde perceber que esta tem sua presença no cotidiano, seja através do samba, da própria natureza, enfim de uma forma ou de outra elas acabam se identificando com esta cultura.

Esta incansável dançarina por opção, pois é graduada em Análise de Sistemas, participa de inúmeros projetos e, de domingo a domingo, percorre vários bairros da cidade, contando, cantando e dançando a história do povo negro. Para conseguir dar conta de tantas andanças ela faz coro ao grande número de pessoas apreciadoras da rapidez e da eficiência destes trens que, ainda que restritamente, cortam a região central da cidade. — O Metrô facilita bastante o acesso para muitos lugares; tem dia que eu o acabo pegando mais de quatro vezes, de qualquer forma eu uso diariamente para ir de um lugar para outro.

Vera integra um pequeno contingente de mulheres que, apesar das inúmeras barreiras, conseguiram ocupar um espaço socialmente importante, mesmo que sem muito retorno financeiro. Os dados revelam que para atingir o mesmo nível salarial dos homens, as mulheres têm que estudar mais. Com o mesmo grau de instrução, as mulheres obtêm rendimentos inferiores aos dos companheiros de sexo masculino e não conseguem atingir índices semelhantes de participação nos diversos ramos de atividades. Um exemplo: das 16 milhões de assalariadas no país, cerca de 4,8 milhões são trabalhadoras domésticas, representando quase 30% do trabalho assalariado. Este dado, entre outros, retrata uma situação extremamente desfavorável para o sexo feminino.

As histórias aqui registradas não têm fim, seguem o seu curso da maneira mais natural possível, engendrando outras e mais outras, num horizonte largo, infinito. São mulheres, homens e crianças vivenciando suas histórias, suas dores, seus amores. Como se as feridas abertas encontrassem sempre um ungüento milagroso que pudesse estancar – mesmo que parcialmente – as chagas de uma gente que segue em frente, navegando nas ondas turbulentas desta “paulicéia desvairada”.

Participantes da construção do espaço urbano, as mulheres que protagonizaram este enredo, seguem a vida delineando a cidade do futuro. Maria Aparecida trabalha no Metrô, mas utiliza mesmo são seus pés para delinear o seu trajeto, Cleonice locomove-se pelas ruas do Jabaquara, pelas viagens diárias nos trens e pelas possibilidades que o novo emprego vem lhe proporcionando. Hercília e Vanessa convivem com um sobe e desce ininterrupto entre a capital e o litoral.

E Vera Cristina de Oliveira, dançarina, educadora e mulher, despede-se desta história, esperançosa de que o seu som possa espalhar fortes vibrações por toda a cidade: — Nesse trajeto todo eu percebo que as várias modalidades artísticas podem ajudar muito as pessoas, pois elas acabam ficando muito felizes. Eu tenho uma felicidade interna muito grande e eu percebi que posso passar o melhor de mim para as pessoas. Descobri um mundo prazeroso, através de um caminho simples e benéfico. A convivência com as crianças foi fundamental para a decisão de seguir este caminho. E este estado latente de felicidade em que me encontro cada vez mais reforça a minha idéia de que a arte faz com que a vida das pessoas mude.

Nos trilhos, nos trens, nas ruas, nos pés, nas cabeças, nos corações, a evidência de um universo que tem muito a dizer, basta ter espaço.

Notas Bibliográficas

  1. Andrade, Oswald, “Reforma Literária”, Jornal do Comércio, 19/5/1921, em Mário da Silva Brito, História do Modernismo Brasileiro, p. 201.
  2. Medina, Cremilda (org.), Nau dos Desejos, p. 273.
  3. Jornal São Paulo Zona Sul, Zona Sul tem sua própria História, p. 3.
  4. Entrevista realizada em 1979, com Alberto, dono do Bar e Café Nossa Senhora das Graças, in Revista Espaço & Debates nº 2, p. 49.
  5. SP MULHERES em dados, boletim da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade), p. 2.
  6. A taipa de pilão constitui-se em uma constante na arquitetura paulista. Devido a facilidade de erosão do solo, as casas eram construídas de barro ou de terra, sempre em plataformas livres das enchentes ou das chuvas.
  7. Silva, Dilma de Melo, Continente da Arte, p. 107, in Medina Cremilda (org.), São Paulo de Perfil nº 16.

Bibliografia

  • ANSARAH, Marília Gomes dos Reis. Política de desenvolvimento na esfera do lazer cultural: estudo de caso do Centro Cultural do Jabaquara. Dissertação de mestrado. Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo,1988.
  • BATISTUZZO, Adriana R. C. e Pacheco, Regina S. V. M. “O processo de valorização dos terrenos em uma área de intervenção pública concentrada: Vila do Encontro, in Revista Espaço & Debates nº 2, 1981.
  • BRITO, Mário da Silva. História do modernismo brasileiro. 5ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
  • ELEUTÉRIO, Maria de Lourdes. Oswald: Itinerário de um Homem sem Profissão. Campinas: Editora da UNICAMP, 1989.
  • Jornal Diário Popular, “Jabaquara muda com o progresso”, de 8/3/97.
  • Jornal O Estado de S. Paulo, “Metrô e novo túnel valorizam Jabaquara”, de 26/3/95.
  • Jornal São Paulo Zona Sul, “Como nasceu o bairro do Jabaquara”, de 14 a 20/1/94.
  • ________, “Zona Sul tem sua própria História”, de 24 a 30/1/92.
  • MEDINA, Cremilda (org.). Axé. São Paulo: CJE/ECA/USP,1996.
  • ________. Nau dos desejos. São Paulo: CJE/ECA/USP, 1994.
  • SALGADO, Ivone. Histórico do Sítio da Ressaca. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, s/d.

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