O Silêncio, de Mohsen Makhmalbaf – Análise da construção de significados e de ambientes através da trilha sonora
Marco Scarassatti
“…tenho a sensação de que devem existir outras maneiras de trabalhar o som, que nos permitiriam ser mais exatos com o mundo interior que tentamos reproduzir na tela; não só o mundo interior do autor, mas aquilo que é intrínseco ao próprio mundo, que faz parte da sua essência e não depende de nós.” (Tarkovski,1990:194)
A proposição dessa análise adianta-se para a questão da identificação de um modo poético na representação do espaço sonoro e a significação do som e da música na composição narrativa do filme. Nesse sentido, o diretor iraniano Mohsen Makhmalbaf e seu desenhista de sons Behrouz Shahamat, buscam usar o som como um agente produtor de espaços mentais subjetivos que se interpõe à relação do espectador com a imagem. Logo na apresentação do título, o tema da sinfonia nº 5 de Beethoven aparece nos acordes de um rubab, instrumento típico dessa região de cultura persa. Essa inserção contrasta com o ruído ambiente no aparecimento do primeiro plano do filme: uma casa à beira de um rio ou lago, onde se escuta uma resultante sonora grave e contínua. Esse relativo silêncio e tranqüilidade são rompidos com o retorno do tema proposto por Beethoven, mas agora sugerido no agressivo bater na porta de uma mão masculina: bambambambam.
É delineada nesse momento a relação que se estabelecerá por todo o filme entre a representação da agressividade e poder contidos na célula rítmica do bater da porta e a conversão sublimada e afinação poética do medo e perigo nos acordes da sinfonia de Beethoven. Com essa relação que se estabelece, todo o som, ruído e música se convertem dentro da diegese fílmica, inviabilizando uma inserção não diegética da trilha sonora. Toda a trilha pode, com isso, ser analisada como diegética ou mesmo meta-diegética, quando ela se refere a uma percepção alterada da personagem em relação aos sons que escuta.
A escuta é vital para Korshid, uma criança cega, personagem central da narrativa, que constrói e redimensiona a realidade vivida através da sua relação com os sons e os sentidos atribuídos às fontes sonoras com as quais se relaciona. Korshid tem aparentemente 9 para 10 anos de idade, mora com sua mãe e trabalha como afinador de instrumentos. O filme flagra cinco dias do cotidiano do menino, que precisa levantar o dinheiro do aluguel para que ele e sua mãe não sejam despejados da casa onde moram. Nesse sentido Korshid protagoniza individualmente alguns aspectos de um drama social do Irã contemporâneo: o desemprego, a miséria, a condição da mulher e a exploração do trabalho infantil, já que sua mãe não pode trabalhar, pois, embora tenha sido abandonada pelo marido (que se mudou para a Rússia à procura de oportunidade), culturalmente deve manter-se dependente dele.
A exploração e abordagem da realidade social e dos dramas contemporâneos, tais como o desemprego e a miséria, através de histórias protagonizadas muitas vezes por crianças, bem como a utilização de cenários reais e de um elenco não profissional, que estivesse identificado com esses espaços, aproxima e liga uma vertente do cinema iraniano, dos anos 90, ao neo-realismo italiano. No filme “O Silêncio”, de Mohsen Makmalbaf, de 1998, essas características também aparecem, mas o que chama atenção é a maneira como há uma transcendência dos preceitos neo-realistas no aspecto do uso do ruído, do som e da música, absorvendo o espectador para a audição como construtora do sentido cotidiano de realidade, tal qual o é para o protagonista na sua relação com os sons da sua intimidade, sua casa e seu trajeto, determinando o valor simbólico da escuta dos sons no espaço fílmico.
Quando Gaston Bachelar, em A Poética do espaço, procura determinar “o valor humano dos espaços de posse, espaços proibidos a forças adversas, espaços amados” (Bachelar, 1974:353), reporta-se ao estudo de imagens poéticas que evocam e reconstroem esses espaços. Sejam eles de intimidade ou exteriores, podem ser deflagrados através dos sons, tornando-se espaços de devaneios, que nos transportam ao que Félix Gattari chama de “folheado sincrônico de espaços heterogêneos”, ou seja, uma múltipla camada de localidades (odores, imagens, sonoridades e percepções) ativadas pelas memórias das experiências vividas e que são disparadas diante de uma nova experiência sensorial e perceptiva.
A relação do som com o espaço, transporta o espectador, o transeunte, ou o artista para o espaço afetivo. E no filme, a representação da tranqüilidade do lar é quebrada pela batida na porta, sinal sonoro que vem de fora, rompe o silêncio e associa-se à autoridade do proprietário da casa onde moram Korshid e sua mãe, e que vem toda manhã cobrar as mensalidades atrasadas, sob pena do despejo. Essa figura de autoridade causadora da instabilidade e medo, masculina e adulta, é relacionada também ao dono da oficina de instrumentos onde o menino trabalha, e que também pressiona Korshid e o acusa de não fazer seu serviço direito.
Voltando à primeira seqüência do filme, Korshid, assim que escuta a batida na porta, converte-se no som da abelha que busca o vôo, saindo do recipiente no qual estava aprisionada; e metaforiza, pedindo a Deus que ela não se perca no caminho,e que encontre flores, e não estercos, para pousar. Quando mais à frente encontra seu patrão, o menino se concentra novamente no som da abelha e percebe que ali ela não estaria pousando em flores, mas sim no estrume. A associação de Korshid com a abelha fica clara quando sua amiga Naderah mostra com os dedos sua imagem no espelho e diz: esse é você, Korshid e o zumbido bom de uma abelha retorna ao primeiro plano de som.
Os espaços mentais construídos por Makhmalbaf através dos sons ouvidos pelo menino são associativos. Freqüentemente Korshid metaforiza seu ofício de afinador: recomenda que uma abelha com um zumbido ruim pouse em flores boas para melhorar seu som, afina os instrumentos da oficina que trabalha, afina a batida de trabalho de outras crianças, afina o medo em música e todo o entorno ao seu cotidiano.
O filme estrutura de maneira simples a rotina diária do pequeno cego. Nos cinco dias, a disposição dos planos é a mesma: a casa no rio, o ponto de ônibus, o trajeto, a oficina. Porém, no trajeto, o imprevisível se dispõe de acordo com o que Korshid escuta. Com isso seu percurso para o trabalho é freqüentemente alterado. Procura permanecer com os ouvidos tampados, para não ser levado a seguir uma bonita voz ou bonito canto instrumental. Quando se reserva, tampando os ouvidos, escuta o som de água, que se refere à mãe, à casa e à questão que deve ser priorizada. Quando se distrai, perde-se atrás de um bonito som, chegando atrasado para o trabalho. Na verdade, sua atitude é poética e associada ao Rubayat de Omar Kayyam (poeta e matemático persa do século XII), declamado por duas meninas e pelo próprio Korshid durante o primeiro trajeto no ônibus.
No momento do devaneio, Korshid abdica de suas preocupações passadas e futuras, vive o presente com intensidade e dedicação, liberta-se e redimensiona o sentido da sua rotina. Não planeja o amanhã e sequer o faz em relação ao seu trajeto. Porém, no momento em que recita o poema, quem se perde do trajeto é a outra face da infância iraniana, a que vai à escola, lê esse texto, mas não se permite levar por ele.
Uma das seqüências subseqüentes chama atenção pela sutileza do diretor ao tratar a relação de amizade entre Korshid e Naderah. Primeiro impõe o ambiente de uma feira, através da cacofonia das vozes e ruídos produzidos pelas pessoas, num plano geral do som da cena. Depois o ponto de escuta se converte na música eletrônica vinda de um rádio de pilha. Nesse instante Korshid se distrai e é atraído pela música. Perde-se. Naderah, ao perceber a ausência do amigo, passa a chamá-lo, sem êxito. Coloca-se no lugar do amigo, fecha os olhos e procura perceber o mundo como ele. Uma música, dessa vez não eletrônica e sim acústica, tocada numa casa de chá, atrai tanto ele quanto ela, e assim encontram-se. Numa leitura superficial, associei também a música eletrônica ao desencontro e a música acústica à possibilidade de encontro.
Korshid ressignifica o som da batida na porta, musicalizando-a a cada início do ciclo diário. Escuta-se no primeiro dia apenas a batida, no segundo a batida mistura-se à música, no terceiro ela quase não é escutada, no quarto a eminência da ação retorna à batida, e no último dia, Korshid antecipa-se à chegada do senhorio e percebe-a sob outra perspectiva, dessa vez já fora da casa.
Intercalados a momentos de puro lirismo, como quando Korshid deixa que a chuva toque o instrumento que carrega, ou quando escolhe o pão que vai comprar pela voz de quem o vende, o filme aponta a realidade da infância e a situação de tensão política aos olhos de uma criança. No terceiro dia, Korshid escuta no ônibus um músico excepcional, que o desvia do trajeto. Esse músico segue seu caminho numa charrete puxada por um cavalo. Korshid, por sua vez sobe numa charrete puxada por uma criança e a trilha sonora mescla os sons do cavalo, dos carros e da respiração ofegante e cansada do jovem que carrega a carroça. Num outro momento, com a companhia de Naderah, afilhada e intérprete do seu patrão, encontra um guerrilheiro armado tocando música numa praça. Admira e teme ao mesmo tempo. Quando passa por uma oficina de construção de panelas, encontra jovens como ele e outros mais velhos, batendo indiscriminadamente para conseguirem abaular o metal, pede para que atentem ao som que fazem e lhes sugere a batida do bambambambam.
No quarto dia, já sem emprego e perspectiva para a solução do problema que o aflige, Korshid reencontra o músico, que sugere que ele e seus amigos toquem para o proprietário, a fim de demovê-lo da ação de despejo. Korshid identifica-se com o músico, assim como demonstrou identificar-se com o guerrilheiro, apreciando suas músicas. Lembro que do mesmo modo que Korshid se relaciona com os insetos, o músico o faz com os animais.
Reúnem-se no quinto dia Korshid, Naderah e os músicos. Sem o pesar do passado ou o medo do futuro, Korshid pede um ritmo próximo ao galope de um cavalo, e com ele inicia seu novo caminho. Reencontrando mais adiante os jovens trabalhadores, batedores de panelas, novamente e em definitivo liberta-se do que lhe sobrou do medo e da responsabilidade que tinha associado ao bater da porta para, a partir dela, transverberar – transformar em luz e som – a 5ª sinfonia de Beethoven regida pelo menino.
Desse modo, Mohsen Makhmalbaf retrata a condição do real, através do olhar/ouvir individual que se choca com o coletivo, reconstrói o espaço vivido por uma criança cega, que mesmo com sua ausente infância protagoniza a possibilidade de transformação, projeta sua relação com os ambientes sonoros que percorre – os sons da casa e seu valor afetivo, os do medo e da esperança -, sempre relacionando a possibilidade de conversão e transformação: do desafinado ao afinado; do silêncio, ao som; do ruído à música.
Referências Bibliográficas
- BACHELAR, Gaston (1974). A poética do espaço. Coleção os Pensadores, vol. XXXVIII. São Paulo: Ed. Abril, 1974.
- BACON, Henry. Visconti, explorations of beuty and decay. New York: Cambridge, 1998.
- CHION, Michel. El sonido, música, cine, literatura… Barcelona: Piados, 1998.
- GATTARI, Félix. Caosmose, um novo paradigma estético. São Paulo: Ed. 34.
- HARVEY, David. Condição pós-moderna.São Paulo: Ed. Loyola, 1989.
- MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas & pós-cinemas. Campinas: Papirus, 1997.
- TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o tempo. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
Marco Scarassatti é músico e professor da Faculdade Cásper Líbero.
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