Revista Ocas: notícias de uma nova vida
Marta Regina Maia
Naiara Pinto Lima
Introdução
Se o passado não abriga boas lembranças, muitas vezes, a saída seria retardar as memórias que teimam em surgir de tempos em tempos. Entretanto esta barragem simbólica não pode ser obtida por uma simples vontade pessoal, afinal aquilo que já passou pode vir a tona a qualquer momento. Os campos de Auschiwitz, por exemplo, deixaram marcas para a posteridade, afinal um acontecimento histórico não desaparece porque sempre há algo a relatar, a denunciar, a esclarecer. O tempo é implacável, tanto para o bem quanto para o mal.
O tempo também é um elemento essencial para que um projeto na área de comunicação consiga obter alguns resultados positivos a partir das experiências de vida de seus integrantes. É o que ocorreu com a ONG Organização Civil de Ação Social (OCAS), que desde 2002 resolveu contribuir para minimizar os sofrimentos de quem mora na rua e em abrigos na cidade de São Paulo. O projeto é baseado nos Streetpapers de alguns lugares da Europa e EUA. Tendo como pressuposto a noção de que a comunicação se constitui dentro de um tecido de relações sociais e também é formadora dessas relações, a Revista Ocas, mantida pela entidade, procura dar voz as pessoas em situação de risco de rua e ainda possibilita a retomada de suas vidas por intermédio do trabalho e do convívio com outras pessoas.
O advento de novas tecnologias comunicacionais, principalmente a Internet, facilitou o acesso da sociedade ao processo de circulação das informações. No entanto não são todos os que estão inseridos neste processo. A liberdade de expressão não é garantida para todos indistintamente, pois há poucos espaços onde as pessoas de baixa condição social possam se manifestar. O que se ouve, lê e assiste diz respeito aos interesses de pequenos grupos com grandes interesses mercadológicos.
A Revista Ocas tenta justamente resistir a esse processo, permitindo que conteúdos sociais e culturais independentes das corporações econômicas venham a tona. Ela atua em duas frentes, em primeiro lugar possibilita à reintegração de pessoas no contexto da cidadania por intermédio do trabalho e da recuperação de suas histórias de vida e ainda dá voz as classes subalternas. “O direito à comunicação constitui um prolongamento lógico do progresso constante em direção à liberdade e a democracia” (RAMOS, 2005: 67)
A Ocas é vendida nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, mas ultrapassa as fronteiras dessas cidades e abre novos horizontes em suas matérias, reportagens e crônicas, já que os assuntos abordados na revista passam, entre outros, pelo Fórum Social Mundial, Viagens pela América Latina e o Trem de Paranapiacaba, em São Paulo.
O conteúdo da revista é um elemento fundamental. Os vendedores, com raras exceções, sentem orgulho de vender a revista. Por seu caráter social e cultural, várias figuras importantes do mundo intelectual e artístico foram capas da Ocas e concederam entrevistas exclusivas, como Chico Buarque, Maria Rita, Ziraldo e Seu Jorge.
A oportunidade de mudança é o principal objetivo da revista. Pelos depoimentos do livro “Terapia de Todos Nós: Vida e Rua”, é possível perceber que, na maioria das vezes, a relação dessas pessoas com a família é conturbada, a utilização de drogas é comum, mas a busca em mudar essa perspectiva é constante e este desejo é de todos. “Todo mundo tem um sonho, este é um objetivo. O que não conseguimos lidar é com a não-concretização daquele objetivo” (2006: 51). Este livro foi produzido pelos vendedores da Revista junto com uma assistente social voluntária, que realizou com o grupo um trabalho de terapia, utilizando o psicodrama. Inúmeros vendedores expõem seus sentimentos, histórias de vida e idéias de uma maneira bastante sensível e peculiar.
Com o objetivo então de mostrar como esse trabalho se desenvolve, serão utilizados como fontes para a produção deste artigo as últimas edições das revistas, o conteúdo veiculado pelo livro citado acima e um trabalho de campo feito junto aos vendedores da Revista . Após contar um pouco da história da ONG e da Revista pretende-se estabelecer uma relação entre o direito à informação e à cidadania e o direito à memória como itens essenciais no processo de crescimento pessoal, intelectual e até mesmo financeiro dos participantes do projeto. Por intermédio deste, ex-moradores de rua têm condições de recuperar a auto-estima e se tornar visíveis perante a sociedade. Este trabalho irá discutir ainda o aspecto da participação nas oficinas e nas próprias páginas da Revista, pois quando os vendedores contam sua história, ressignificam fatos de sua vida a partir de um novo ponto de vista, no qual estão inseridos.
O direito à informação e à cidadania
A revista Ocas é produzida por voluntários que também compõem a diretoria da ONG. Alguns deles apenas escrevem para a Revista, enquanto outros realizam oficinas ou outros tipos de trabalho com os vendedores, como a Oficina de Criação que produz textos para a editoria “Cabeça Sem-Teto” da própria Revista, e o grupo de psicodrama orientado pela assistente social Maria Alice Vassimon.
As oficinas, não obrigatórias, estão abertas para os vendedores que desejam participar. Já em algumas reuniões programadas é exigida a presença do vendedor, pois há discussões sobre a distribuição das revistas e a definição dos pontos de venda onde cada vendedor irá trabalhar durante a semana. Nesse encontro, os vendedores expõem suas dificuldades e trocam informações entre si, relacionando-se de forma direta e horizontal.
Na Oficina de Criação, além de produzir alguns textos, os vendedores realizam uma avaliação geral da revista. Este é um encontro onde os vendedores participam da elaboração da revista e ganham voz para realizar denúncias sociais, para dizer aquilo que pensam e que acham importante. O caráter não obrigatório desse encontro edifica a vontade de participação. Os vendedores passam de uma condição de invisibilidade, enquanto moradores de rua, para agentes atuantes de um processo de construção de um meio de comunicação, cidadãos que têm mais que liberdade de expressão, têm um lugar para projetar suas idéias.
A Ocas se coloca como um lugar de passagem. Lugar onde as pessoas conquistam a possibilidade de retomar suas vidas, muitas vezes esquecida na embriaguez das drogas e na solidão das ruas. Dessa maneira, o destino dos vendedores da revista toma um caminho diferente por meio do trabalho e reintegração em uma comunidade.
A cidadania e o direito de emitir opinião podem parecer elementos básicos de uma democracia, mas são negados a todo momento pela sociedade a esses homens e mulheres considerados invisíveis. Quando o espaço de discussão e opinião é conquistado acaba sendo valorizado por eles:
A gente aprendeu a ter voz. Muitas coisas que a gente falou entrou para o planejamento. Construção do Plano Estratégico. O mais importante é a gente ter conseguido mostrar voz na missão da Ocas, não só Plano Estratégico. Quando se percebeu que a voz do vendedor tinha visão diferente conseguimos fechar. Dentro da estrutura, agora o vendedor tem voz. (ANDRADE, 2005: 73)
A partir do momento em que o vendedor ingressa no projeto da Ocas, ele é encaminhado, caso necessário, a um albergue ou moradia provisória. Todos devem obedecer a um Código de Conduta, que segue impresso em todas as revistas. Aquele que descumpre essas regras é retirado do projeto.
O objetivo da revista é oferecer uma oportunidade para que pessoas em situação de risco social possm trabalhar para melhorar sua condição de vida. A revista atualmente é vendida por R$3,00, sendo que R$2,00 ficam para o vendedor e R$1,00 para a revista (para a cobertura de despesas como impressão e transporte).
Direito à memória
O conceito de memória que norteia este artigo vem de um consagrado cientista da área de Neuroquímica, Iván Antonio Izquierdo, que, mesmo voltando seus estudos mais específicos para a área biológica, não isola as pessoas de sua vida social:
Todas as memórias se formam a partir de experiências […] O aprendizado é aquisição de memória. Aprendemos pelas experiências e o número delas é literalmente infinito. Lembrar-se do que foi aprendido é o que chamamos memória. A única forma de avaliar o aprendizado é medir a memória que ele deixa ou quando esquecemos dele. (1999: 12)
O grande desafio da ONG que trabalha com moradores de rua é justamente saber ouvir, em uma época que assiste o fim da “comunidade de ouvintes”, como diria Walter Benjamin (1993: 205). Mas nem tudo está perdido, pois o testemunho ainda encontra espaço na sociedade. É preciso persistência e tenacidade para se conseguir compartilhar, para trocar idéias, histórias de vida, fracassos, angústias e até alguns lampejos de felicidade.
Recorre-se portanto às lembranças como o elemento que vai trazer à tona as circunstâncias-chave que podem traduzir um momento singular do tempo vivido pelos depoentes. A memória, neste caso, não é vista como absoluta ou genérica, mas sim em função das práticas culturais cotidianas de determinadas pessoas em determinado tempo e espaço, especialmente àquelas relacionadas com suas histórias de vida. É importante ressaltar que o filtro da memória pode reduzir o que se pretende trazer à tona, afinal passado e presente, incluindo também o futuro, não são momentos estanques, separados mecanicamente. Há uma disposição constante, permeada pela tensão, em construir/reconstruir a identidade e a memória participa ativamente desse processo.
Ao discutir a “cultura do passado”, Beatriz Sarlo recupera a noção da narração como experiência sensorial, que pode levar o sujeito a uma espécie de retorno ao passado e que também pode ser traduzida na prática de tornar comum algo originário de uma experiência privada. Para ela “não há testemunho sem experiência, mas tampouco há experiência sem narração: a linguagem liberta o aspecto mudo da experiência, redime-a de seu imediatismo ou de seu esquecimento e a transforma no comunicável, isto é, no comum” (2007: 24). Os encontros terapêuticos ocorridos entre os vendedores da revista exemplificam esta questão de uma maneira concreta. É possível perceber, nos depoimentos, que a possibilidade de ter sua história ouvida e até comentada por outros, reacende a noção de pertencimento a uma sociedade que até então só lhe proporcionou indiferença.
No livro “Terapia de todos nós: vida e rua” é possível perceber as inúmeras marcas que o tempo deixou em cada um deles. Segundo a terapeuta foram compartilhadas histórias de todas as matizes, mas o que prevaleceu foi o espírito de grupo, o que mostra a importância da troca, da sociabilidade cultural e social, da comunicação interpessoal como base para a criação de uma “estrutura de sentimentos”, como definiria Raymond Williams, que está mais interessado “nos significados e valores tal como são vividos e sentidos ativamente” (1979: 143).
Entre muitos relatos significativos fica a difícil tarefa de escolher um que possa mostrar toda a complexidade dos depoimentos:
Com seis anos de idade, eu cheirei cola, minha mãe não sabia. Eu cheirei cola e saiu no jornal. Eu ia para escola só para comer merenda, eu roubava desde pequeno. Com sete anos, minha mãe morreu, Minha mãe disse: “Quem vai pra feira comigo hoje?” Ela tinha um cara que era bandido. Ela chegou atrasada, ele deu sete facadas nela. Meu pai era mestre pintor, caiu de um prédio. Eu fui escolhido como mula para levar droga. Vimos para São Paulo. Fiquei aqui preso, aprontando. Aí fui conhecer a Ocas, eu chegava drogado. Tenho irmãos em Salvador, não culpo. Eu estava em presídio na Febem. Minha irmã existe, ela sofreu muito, Eu fui atrás dela em Salvador. (ANDRADE, 2005:12)
Iván A. Izquierdo, a partir de suas pesquisas, garante que “a amnésia atinge em maior grau ou maior gravidade as pessoas de baixo nível cultural (primário incompleto) do que as pessoas com nível de educação superior: a proporção é de 5 a 1 e independe do nível sócio-econômico”.(1999: 13). Este fator está intrinsecamente aliado ao nível cultural que o entrevistado apresenta, não no sentido de nível de erudição, mas no sentido de garantir uma espécie de lastro mnemônico com o passado, identidade e família. Pode-se notar que os depoimentos, em geral, são entrecortados, sem muita coesão, típicos de quem não mantém nenhuma relação iconográfica e tampouco familiar que podem contribuir para que a lembrança seja recorrente.
Nesse sentido, as inúmeras reuniões realizadas semanalmente, em especial as sessões de terapia, tentam garantir o que se poderia chamar de direito à memória. Para Halbwachs (1990), a vivência do coletivo é essencial, pois o homem se define e se constrói pela cultura, já que se encontra inserido em um contexto social.
Dando relevo às instituições formadoras do sujeito, Halbwachs acaba relativizando o princípio, tão caro a Bergson, pelo qual o espírito conserva em si o passado na sua inteireza e autonomia. Ao contrário, o que o sociólogo realça é a iniciativa que a vida atual do sujeito toma ao desencadear o curso da memória. Se lembramos, é porque os outros, a situação presente, nos fazem lembrar. (BOSI, 1994: 54)
Entretanto, quando os indivíduos são chamados a relembrar, apesar da filtragem pressuposta, pode-se romper certos limites e dar vazão a fluxos intensos e amplificados. Se a idéia do caráter espontâneo da memória é praticamente impossível, segundo Halbwachs, talvez a provocação aos participantes do projeto possa representar uma forma de se lembrar, como ele mesmo afirma: “O maior número de nossas lembranças nos vem quando nossos pais, nossos amigos, ou outros homens, no-las provocam”.(APUD BOSI, 1994: 54)
Vínculos que possibilitam a mudança
Nas ruas os indivíduos sobrevivem por si mesmos, “abandonados” pelas famílias e pela sociedade, afinal retomar a vida é muito difícil, pois significa relembrar de momentos tristes, abandonar (em muitos casos) as drogas, assumir compromissos, organizar-se e obedecer regras.
Ao vazio gerado pelo desemprego, pela falta de moradia, durante o período em que se está nas ruas, de acordo com um dos vendedores da revista, leva a depressão. Uma forma de aliviar essa dor é o uso de drogas, dessa maneira não se sente as angústias e cria-se a ilusão de que aquela situação não é tão ruim. Nas palavras do vendedor “ficar aqui é cômodo a gente não sente muito” (ANDRADE , 2005: 15)
Há inúmeros empecilhos, na maioria pessoais, que dificultam o processo de reintegração social. O “compromisso” é um deles. Em várias falas do livro, é possível observar isto: “Assumir um compromisso apesar de todas as dificuldades que há. Eu tenho ojeriza ao compromisso. Tive uma criação abastada, isto custa tanto trabalho. Compromisso, responsabilidade, medo”. (ANDRADE , 2005: 34). Outro vendedor também toca no assunto:
Vivemos pelo mundo, compromisso pressupõe organização. Antigamente eu não tinha compromisso nenhum. Eu estava cavando uma cova, eu pensei, dormir na rua, albergue, brigava. Mudar, cheguei na Ocas. Por experiência própria, o tal kwon do, a violência paciente, liberação de energia. Durante a semana eu pensei, dois anos e meio, terapia individual. Eu falava da minha vida pra ela, terapia de grupo. (ANDRADE , 2005: 58)
Outra dificuldade para a realização da mudança de vida é a baixa auto-estima, comum entre a população que vive na rua. O desafio é resgatar a confiança no outro e em si próprio, para isso é necessário os vínculos dentro da comunidade. No livro escrito pelos vendedores, um deles relata um episódio de sua vida que lhe despertou a importância de manter relações. “Criar vínculos é importante. Amor ao cachorro. Estava um ano albergado, um rapaz me ajudou a comprar um pão com calabresa, pra mim e pra ele, não me deixou desistir, recriar vínculos” (ANDRADE , 2005: 41). Este fato aconteceu em um albergue, mas em qualquer lugar onde as pessoas convivam, em especial onde mantém um interesse em comum, pequenas ações podem despertar para a ação comunitária, a solidariedade e cooperação.
De qualquer modo, se relacionar é uma maneira de construir um futuro, estabelecer compromissos e repensar o passado, difícil de ser encarado, e que deixa marcas impagáveis.
De acordo com um dos depoimentos do livro, algumas “marcas” impedem o relacionamento entre as pessoas e bloqueiam a felicidade. A comunidade é um lugar onde as pessoas podem estabelecer esses vínculos e encontrar sustentação para a re-construir a vida. Ela dá suporte para a mudança. “A transformação é onerosa e prazerosa, mas não se consegue transformar o outro. Às vezes momentaneamente desperta uma coisa nova”. (ANDRADE, 2005: 50)
Em seu livro “Homens Invisíveis: Relatos de uma humilhação social”, Fernando Braga da Costa escreve que “um homem se alimenta do olhar de outro homem” (2004: 216). Mas para Braga esse olhar deve ser compartilhado entre as pessoas e partir de uma relação horizontal: “Sentimo-nos de fato iluminados – alimentados – na experiência intersubjetiva do olhar desembaraçado: ver e sentir-se como quem é visto. O olhar dos outros homens, desamarrado de posições classistas, é força que nos sustenta”. (2004: 217)
Enquanto os vendedores da revista Ocas buscam um recomeço de vida, a sociedade continua a movimentar-se rapidamente. A produção, o consumo e o dinheiro, engendram esse movimento, que não permite que as pessoas parem. O tempo entre aqueles que estão à margem da sociedade e aqueles que trabalham e conseguem se manter é outro. É isso o que percebe um vendedor da Ocas: “Estou na moradia provisória e eu tive que voltar no Colégio Sto Antonio de Lisboa. Um ano e tanto em situação de rua, eu fiquei longe depois fui rever todos. Eu cumprimentei a todos, mas as pessoas estão muito ocupadas”. (ANDRADE , 2005: 30). Analisando as falas do livro em questão nota-se que o reencontro com a família é o desejo da maioria dos vendedores, é a necessidade de vínculos que o ser humano tanto necessita.
O espaço aberto a Terapia consistiu num lugar de cumplicidade, onde as pessoas poderiam expressar aquilo de mais íntimo que considerassem necessário. Um espaço para ser ouvido e para ouvir, compartilhar e trocar conselhos. “Foi importante ter falado aqui. Recuperei muitas coisas. Nunca tinha falado de minha história, só um e outro ouviu o que eu vivi”. (ANDRADE , 2005: 10)
A percepção do outro, e de seu valor é um despertar. Mas isso só acontece quando primeiro o indivíduo está inserido em uma comunidade e relacionando-se com as pessoas. “Tem que se estruturar para depois poder ser gente. Eu vivi muito tempo isolado, porque pensei que nós éramos só nós”. (ANDRADE , 2005: 56). Como na revista Ocas os encontros e oficinas não são obrigatórios, nem todos os vendedores conseguem atingir esse objetivo. Em muitos casos a rivalidade, a disputa está presente (quem vende mais revista). De qualquer modo essa atitude é a prova de que mesmo excluídos socialmente e economicamente, a cultura hegemônica do mercado está presente e não deixa de ser referência para muitos.
Considerações finais
A revista abre espaço para os vendedores expressarem suas opiniões, angústias, enfim contribui para a tradução de sentimentos em palavras, que contribui para a própria reconstrução do passado. Não há uma busca pela verdade absoluta, mas sim uma tentativa de encontro compartilhado, cujos vínculos podem ser cada vez mais encontrados nas conversas, no estar junto. Inclusive os participantes do processo também passam pelas agruras de um trabalho social que, muitas vezes, enfrenta dificuldades de financiamento.
Ao proporcionar a experiência do “estar juntos”, seja nos espaços sociais de discussão, seja nas próprias páginas da revista, o direito de ser cidadão é exercido. A construção de um conhecimento coletivo, a existência de uma postura ativa porque repleta de sentidos, o direito da lembrança, mesmo carregada de insatisfações, e a perspectiva – muitas vezes negada pela condição de vida -, do encontro com o outro, da noção de coletivo para esse ser solitário em meio à multidão.
A Ocas pode ser considerada uma comunidade gerativa, pois não é uma organização que está unida somente como forma de sobrevivência da identidade, mas como forma de sobrevivência enquanto vida realmente. Aqueles que dela usufruem necessitam de ajuda financeira, social e psicológica, para compreender que as experiências vividas não têm um único culpado, mas são situações que quaisquer pessoas podem enfrentar, por melhor que elas sejam. (FRANZONI, LIMA, 2005: 57)
As políticas públicas sociais do país, incluindo as de habitação, não são condizentes com as necessidades reais da população. O trabalho de entidades como a Ocas contribuem para minimizar a dura realidade enfrentada por pessoas que não conseguem ter o direito à dignidade.
O vínculo a uma publicação como a revista recupera um sentimento comunitário que perpassa a vida cultural dos indivíduos, afinal as pessoas tem muito o que contar, o que falta, muitas vezes, são os espaços para tal empreitada. Portanto nada mais justo do que terminar este artigo com as palavras dos próprios vendedores, que na data de aniversário de três anos da revista, produziram um texto coletivo na Oficina de criação, que sintetiza o trabalho desenvolvido:
Hoje o dia é especial, Hoje o dia representa um ano – mais um – de experiência, de esperança. Hoje o dia é uma ponte que une passado e futuro. O hoje é feito de recordações, de um tempo que passou, mas que a gente revive ao relembrar. O hoje contém o que desejamos para amanhã, para daqui a um, dois, dez anos. O hoje merece um bolo, pastéis, guardanapos, flores, tubaínas. O hoje pede amigos, filhos e abraços; também pensamento, solidão e reflexão. O hoje é contraditório – tão universal quanto particular para cada um de nós. (Revista Ocas, 2005, ed. nº 36: 11)
Nota
- Em 2005, uma das autoras deste artigo teve a possibilidade de conviver com alguns vendedores, por causa de uma pesquisa participante, fruto do trabalho de Projeto Experimental do curso de Jornalismo da Universidade Metodista de Piracicaba. A citação da monografia resultante desta pesquisa encontra-se nas Referências Bibliográficas.
Referências Bibliográficas
- ANDRADE, Antonio César e outros. Terapia de Todos Nós: Vida e Rua, São Paulo: Editora Eventos Ltda, 2005.
- BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas, vol. 1. São Paulo: Brasiliense, 1993.
- BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade. 4ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
- COSTA, Fernando Braga da. Homens Invisíveis: Relatos de uma humilhação social. São Paulo: Globo, 2004.
- FRANZONI, Ana Paula e LIMA, Naiara Pinto. Revista Ocas: Virando as páginas da vida. Piracicaba, São Paulo. Monografia do Projeto Experimental do curso de Jornalismo da Universidade Metodista de Piracicaba, 2005.
- HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.
- IZQUIERDO, Iván Antonio. O apaixonante estudo da memória. In: Revista do INCOR, n° 48, 1999.
- OCAS, Revista. Edições nº 36 à nº 43, São Paulo: Organização Civil de Ação Social, 2005 à 2007.
- RAMOS, Murilo César “Comunicação e Direitos sociais e políticas públicas” in MELO, José Marques, SATLHES, Luciano (org.) Direitos à comunicação na sociedade da informação. São Bernardo do Campo, SP: Umesp, 2005.
- SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007.
- WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1979.
Trabalho apresentado no V Seminário Memória Ciência e Arte: razão e sensibilidade na produção do conhecimento, 2007, Campinas/SP, realizado pelo Centro de Memória da Faculdade de Educação da Unicamp.
Marta Regina Maia é Doutora em Ciências da Comunicação – Jornalismo – pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), Mestre em Educação pela Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep) e professora da Metrocamp (Faculdades Integradas Metropolitanas de Campinas), sendo responsável pela área de pesquisa no curso de Comunicação Social desta Instituição. Também é historiadora formada pela Unicamp. Vice-líder do Grupo de Pesquisa “Processos Mediáticos e Culturais”, do CNPq.
Naiara Pinto Lima é jornalista formada pela Universidade Metodista de Piracicaba e pós-graduanda na Universidade de São Paulo.
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